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27/06/2024

O Imposto Seletivo e seus verdadeiros riscos

Na última segunda-feira (24/06), a Câmara dos Deputados realizou audiência pública no âmbito do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária, para a discussão de temas pertinentes ao Imposto Seletivo (IS), que vem sendo chamado popularmente de “imposto do pecado”.[1] A discussão se desenvolve a partir do texto do PLP nº 68/2024, e uma das falas que acabou por reverberar bastante negativamente foi a da Ministra do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, quando referiu a possibilidade de veículos elétricos serem alcançados pelo imposto, sob o argumento de que as baterias de lítio utilizadas possuem uma “pegada de carbono”, o que, nas suas palavras, precisa “ser contabilizado”.

A preocupação que se manifesta nas linhas seguintes deste artigo está menos relacionada a esse aspecto específico das baterias de lítio, e mais relacionada a uma questão de fundo muitas vezes posta em segundo plano pelo grande público: os limites do poder do Estado para tributar. Para chegar ao tema, no entanto, é preciso dar um passo atrás e compreender melhor o que é o Imposto Seletivo.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que promoveu a Reforma Tributária a nível constitucional, atribuiu à União a competência para instituir imposto sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar” (art. 153, VIII), e determinou que as alíquotas haverão de ser fixadas em lei ordinária (§ 6º, VI). Ou seja: a EC criou o novo imposto, mas atribuiu ao legislador complementar a tarefa de defini-lo e ao legislar ordinário a tarefa de estabelecer as suas alíquotas.

Um ponto que tem sido objeto de receio, nesse particular, diz respeito ao fato de que a atribuição de competência estabelecida no texto constitucional é, por si, bastante abstrata. Definir se um produto ou serviço é prejudicial à saúde ou ao meio ambiente é tarefa complexa, podendo-se considerar, para isso, desde as consequências mais imediatas de sua fabricação, prestação, consumo ou fruição, até as mais remotas (consequências das consequências das consequências, e assim por diante).

Quando se está a tratar de atribuição de competência para tributar, a Constituição, de um lado, autoriza que o Ente Federado exerça esse poder dentro de determinados parâmetros e, implicitamente, também proíbe que o exerça fora dos limites autorizados. No entanto, se essa margem é demasiadamente abstrata, torna-se difícil estabelecer claramente os limites do poder estatal sobre a propriedade privada e, por via de consequência, abre-se ao legislador infraconstitucional uma margem mais ampla de atuação tributária.

Não se pretende fazer alarmismo quanto ao ponto, mas, infelizmente, já se dispõe de amostragem suficiente na história institucional do país para se suspeitar que o Estado brasileiro não costuma se pautar por deveres de autocontenção quando se trata de arrecadação.

O que está em discussão, agora, é o Projeto de Lei Complementar que visa, dentre outros aspectos, definir o Imposto Seletivo, prevendo em que condições e sobre o quê ele poderá ser exigido. No PLP nº 68/2024, é preciso dizer, o que se tem até o momento é a adoção de balizas aparentemente claras para isso. Está prevista a incidência sobre (i) veículos, (ii) embarcações e aeronaves, (iii) produtos fumígenos, (iv) bebidas alcoólicas, (v) bebidas açucaradas e (vi) bens minerais extraídos (art. 393, § 1º). Nada impede, contudo, que no futuro sejam incluídas novas hipóteses via lei complementar.

No que se refere aos veículos, as alíquotas incidentes deverão ser reduzidas ou aumentadas considerando seis critérios, “nos termos de lei ordinária”: (i) potência, (ii) eficiência energética, (iii) desempenho estrutural e tecnologias assistivas à direção, (iv) reciclabilidade de materiais, (v) pegada de carbono e (vi) densidade tecnológica (art. 404, § 1º).[2] Ainda, o Projeto prevê alíquota zero para veículos sustentáveis, os quais, para serem assim classificados, deverão atender a critérios específicos relacionados à emissão de dióxido de carbono (eficiência energético-ambiental), considerando o ciclo do poço à roda, à reciclabilidade veicular, à realização de etapas fabris no país e à categoria do automóvel, enquadrando-se em índices mínimos ou máximos relacionados em lei ordinária para cada um desses balizadores.[3]

Retornando à fala da Ministra do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, o que ela referiu, fazendo menção ao Projeto, foi apenas que, a partir desses critérios (cujas mensurações só virão em lei ordinária), é possível que um veículo elétrico com baterias de lítio venha a ser alcançado pelo IS, caso não se enquadre como um “veículo sustentável” à luz das variáveis acima mencionadas.

À parte das discussões políticas envolvendo a correção ou a incorreção de uma hipotética tributação de veículos elétricos, o ponto que suscita verdadeira preocupação sob a ótica jurídica é a fluidez (chamemos assim) dos critérios para a incidência do Imposto Seletivo. Será muito difícil realizar um controle de constitucionalidade quanto aos limites ao exercício dessa competência, face à complexidade de se definir em que medida um produto ou serviço é ou não prejudicial à saúde ou ao meio ambiente. Esse fenômeno, aliás, já pode ser observado em casos hoje judicializados, a exemplo da ADI 5.553, em que se discute a constitucionalidade dos benefícios concedidos sobre defensivos agrícolas (escrevemos sobre o tema em março deste ano, ler aqui).

Nessa ótica, ficará praticamente a cargo do legislador infraconstitucional delinear sua própria esfera de atuação, e sabemos como as legislações tributárias no Brasil vão se moldando de modo errático e gerando distorções com o passar dos anos. Um exemplo disso é o regime não cumulativo do PIS e da COFINS, já denunciado como em processo de inconstitucionalização pelo próprio STF, no Tema 337, exatamente em virtude da falta de coerência e razoabilidade nas alterações legislativas implementadas ao longo do tempo.[4].

É preciso, portanto, que a sociedade esteja vigilante quanto ao exercício da competência legislativa relativa ao “imposto do pecado”. A Reforma Tributária, tão anunciada quando da promulgação da EC nº 132/2023, “ainda está por ocorrer”, e o singelo alerta que se pretende deixar é o de que fiquemos atentos a esse aspecto tão caro a nós, contribuintes: segurança quanto aos limites do poder estatal para tributar.

 

 

Luis Carlos Fay Manfra
Advogado na P&R Advogados Associados

 


[1] A íntegra da audiência pública está disponível para visualização: https://www.youtube.com/watch?v=RaU8kU42g_M

[2] Art. 404. Observado o disposto no art. 405, as alíquotas do Imposto Seletivo aplicáveis aos veículos classificados nos códigos da NCM/SH relacionados no Anexo XVIII serão estabelecidas em lei ordinária.
§1º As alíquotas referidas no caput serão reduzidas ou aumentadas em relação a cada veículo conforme enquadramento nos seguintes critérios, nos termos de lei ordinária:
I – potência do veículo;
II – eficiência energética;
III – desempenho estrutural e tecnologias assistivas à direção;
IV – reciclabilidade de materiais;
V – pegada de carbono; e
VI – densidade tecnológica.

[3] Art. 405. A alíquota do Imposto Seletivo fica reduzida a zero para veículos de que trata o caput do art. 404 que:
I – atendam a critérios de sustentabilidade ambiental; ou […]
§1º Será considerado sustentável o automóvel ou veículo comercial leve que atender a critérios específicos relativos a:
I – emissão de dióxido de carbono (eficiência energético-ambiental), considerado o ciclo do poço à roda;
II – reciclabilidade veicular;
III – realização de etapas fabris no País; e
IV – categoria do veículo.
§ 2º Para ser caracterizado como sustentável, o veículo deverá se enquadrar em índices mínimos ou máximos, conforme o caso, relacionados em lei ordinária para cada um dos critérios previstos no § 1º.

[4] No julgamento do RE 607.642 (Tema 337), o Min. Dias Toffoli ponderou que as Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/04, originalmente constitucionais, estariam em processo de inconstitucionalização, decorrente da ausência de coerência e da adoção de critérios racionais e razoáveis nas sucessivas alterações legislativas implementadas ao longo dos anos quanto à determinação de quais atividades e receitas haveriam de se submeter aos regimes cumulativo e não cumulativo do PIS e da COFINS.

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