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28/03/2024

STF EXAMINA CONSTITUCIONALIDADE DE BENEFÍCIOS FISCAIS SOBRE DEFENSIVOS AGRÍCOLAS

28/03/2024

Na última segunda-feira (22/03), o STF retomou o julgamento da ADI 5.553, na qual se examina a constitucionalidade dos incentivos de ICMS e IPI concedidos aos defensivos agrícolas (ou agrotóxicos). A argumentação do PSOL, autor da ação, é a de que a concessão desses benefícios fiscais afronta o princípio da seletividade tributária em função da essencialidade, o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à saúde.

O voto do Min. Relator, Edson Fachin, proferido ainda em outubro de 2020, foi no sentido de declarar a inconstitucionalidade com efeitos prospectivos a partir do julgamento. No que se refere ao primeiro ponto (seletividade tributária), o Ministro ponderou não estar em xeque “a constitucionalidade da utilização dos agrotóxicos, mas do incentivo a este uso por meio de benefícios fiscais”. Nessa ordem de ideias, registrou não haver comprovação da correlação entre a concessão dos incentivos e a finalidade que os legitimaria (redução do preço dos alimentos), notadamente porque as commodities em cuja produção os defensivos são empregados em maior escala têm seus preços definidos por outros fatores, fortemente influenciados pelo mercado internacional. Além disso, segundo o Relator, para atender à essencialidade, bastaria “que o benefício incidisse sobre o produto final”, de modo a alcançar “o seu efetivo destinatário, o consumidor”, independentemente do uso desses produtos na cadeia produtiva.

Já quanto aos efeitos do emprego dos defensivos para o meio-ambiente e para a saúde humana, o Ministro invocou diversos estudos, no intuito de demonstrar que o uso desses químicos é capaz de ocasionar dano aos bens-jurídicos em questão. A partir disso, concluiu estar em desacordo com a Constituição a prática estatal de conceder tratamento tributário beneficiado aos defensivos agrícolas.

Essa posição foi acompanhada pela Min.ª Cármen Lúcia, que também se posicionou pela inconstitucionalidade dos incentivos.

O Min. Gilmar Mendes, de outro lado, apresentou voto em sentido contrário, compreendendo não haver inconstitucionalidade nos incentivos. Segundo argumentou, seria “ingenuidade acreditar que a revogação de tais benefícios iria ser assumida pelos próprios agentes econômicos”, não havendo “dúvida de que a declaração de inconstitucionalidade […] implicaria aumento de preços nos alimentos”. Anotou, nesse sentido, que “os defensivos agrícolas ainda são produtos essenciais neste país de clima tropical e dimensões continentais”, e, também invocando diversos estudos técnicos, referiu que, se os produtos fitossanitários não fossem utilizados, a produção agrícola sofreria uma redução da ordem de 50%, do que se pode concluir que o uso dos defensivos agrícolas permite que se aumente a produtividade sem a necessidade de expansão da área plantada/cultivada.

Ponderou, ainda, que há, no Brasil, uma estrutura normativa robusta dedicada à regulação do fornecimento e do uso desses produtos, submetendo os profissionais envolvidos na comercialização e na utilização de agroquímicos a responsabilização administrativa, civil e até mesmo penal, na hipótese de causarem danos à saúde humana ou ao meio ambiente. Registrou ser “inconcebível uma utilização perdulária de agroquímicos” como decorrência da concessão de incentivos fiscais, por se tratar de itens de demanda inelástica, inexistindo, na lógica de mercado, “o interesse de consumo excessivo de produto que represente um gasto necessário à produção e que não traga como contrapartida um aumento de eficiência”.

Nesse contexto, o Ministro concluiu que, em diante de situações complexas como essa, o Judiciário há de atuar “com deferência aos idealizadores da política tributária, de maneira a compreender que não existe solução fácil”. Nas suas palavras, embora não se esteja a conferir uma “carta em branco ao Legislativo e ao Executivo no que se refere à concessão indiscriminada de benefícios fiscais que possam causar considerável lesão ao meio ambiente ou ao direito à saúde”, o fato é que, no que se refere aos produtos sob exame, “o ordenamento jurídico brasileiro já prevê as condicionantes e os procedimentos para que tal não ocorra”.

Essa posição foi aderida integralmente, até o momento, pelos Ministros Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes.

O Min. André Mendonça também divergiu do Relator, mas propôs uma solução intermediária, no sentido de declarar a existência de um processo de inconstitucionalização e impor a adoção de providências por parte dos Poderes Executivos da União e dos Estados.

Toda essa contextualização dos argumentos – que, aliás, estão postos de modo bastante resumida neste texto – denota algo, já a esta altura, bastante evidente ao leitor: o fato de que a controvérsia em questão é muito complexa. E não apenas sob a perspectiva jurídica, mas sob a perspectiva fática. Não à toa, tanto o Min. Edson Fachin quanto o Min. Gilmar Mendes invocaram, ambos, diversos estudos técnicos relacionados aos efeitos do uso dos produtos em discussão para o meio ambiente e para a saúde humana, e chegaram a conclusões diametralmente contrárias no que se refere à adequação dos benefícios aos preceitos constitucionais sob análise.

O que se quer evidenciar com essa observação é que nem sempre o Judiciário disporá de subsídios técnicos para adentrar na minúcia de discussões dessa natureza. O fato de a Constituição de 1988 dispor sobre diversos temas, e de modo detalhado, acaba por conferir ao STF uma competência bastante ampla, propiciando a judicialização de questões, por vezes, intimamente relacionadas à definição de políticas públicas. O caso dos incentivos concedidos aos defensivos é um exemplo muito claro desse fenômeno. É inegável que o direito ao meio ambiente equilibrado e à saúde são tutelados constitucionalmente. Todavia, também é muito difícil determinar com precisão em que medida uma política tributária como a ora discutida acarreta, ou não, uma ofensa tangível a esses bens jurídicos, a ponto de permitir que o Judiciário interfira na política pública fiscal.

Perceba-se: não se está aqui a afirmar que essa análise judicial é impossível, mesmo porque, é dever do STF zelar pela Constituição, de modo que se uma política estatal ofende direitos assegurados no texto constitucional, tal intervenção é salutar. A questão é a dificuldade de se evidenciar que uma determinada política pública enseja inconstitucionalidade, o que, nesse caso específico, é ainda agravado pelo fato de que se está a tratar de uma política fiscal, que, no máximo, é capaz de induzir comportamentos dos particulares – ou seja, não está em questão, sequer, uma ação direta do Estado em sobre a saúde pública ou o meio ambiente.

A depender da perspectiva, pode-se chegar a argumentos para afirmar que todo o sistema tributário brasileiro é, de algum modo, inconstitucional. No que se refere aos benefícios fiscais, o leque de argumentos é vasto. Em se tratando de extrafiscalidade, sempre haverá consequências positivas e negativas, e consequências das consequências.

Naturalmente que essa é uma figura de linguagem, mas o ponto que se pretende frisar é que, diante de situações complexas como a enfrentada na ADI 5.553, a atuação do Judiciário “com deferência aos idealizadores da política tributária”, como referiu o Min. Gilmar Mendes, talvez seja, realmente, o caminho mais prudente e consentâneo com a Separação de Poderes. De todo modo, volta-se a dizer que a controvérsia está longe de ser simples, e as reflexões aqui propostas buscam evidenciar justamente isso.

O julgamento tem previsão de conclusão no Plenário Virtual no próximo dia 03/04/2024, e o Escritório está acompanhando o tema atentamente.

 

Luis Carlos Fay Manfra

Advogado na P&R Advogados Associados

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