Aqueles que transitam no meio tributário sabem que a “discussão” envolvendo a incidência do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte não é nova. Há muitos anos essa questão é debatida, muito embora, também há muito anos, já haja uma posição sólida da jurisprudência no sentido da impossibilidade de cobrança do tributo sobre tais operações – daí as aspas usadas acima. A propósito, veja-se que a Súmula 166 do STJ é de 1996, anterior à própria Lei Kandir. De lá para cá, tivemos um julgamento em recurso repetitivo no STJ (Tema 259, de 2010), um julgamento em repercussão geral no STF (Tema 1.099, de 2020) e o mais recente julgamento da ADC 49, ainda em trâmite no STF, sempre no mesmo sentido.
A referida ADC teve o mérito julgado pela Suprema Corte em 2021, oportunidade em que se reconheceu a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar 87/96 que previam a cobrança. Ocorre que essa decisão traz diversas outras implicações para a sistemática de tributação do ICMS, notadamente no que se refere à não-cumulatividade. Discute-se, por exemplo, se o contribuinte que realiza uma saída em transferência poderia permanecer com o crédito de ICMS da respectiva entrada, bem como se, em sendo admitida a manutenção desse crédito, ele poderia ser transferido juntamente com a mercadoria para o estabelecimento de destino. Tais questões levaram o Estado do Rio Grande do Norte, autor da referida ação, a opor embargos de declaração em face do acórdão, por meio de qual requereu esclarecimentos sobre esses pontos e a modulação de efeitos do julgado.
Em outubro do ano passado, quando escrevemos sobre o tema, destacamos o recém disponibilizado voto do Min. Roberto Barroso, em que acompanhou o Relator, Min. Édson Fachin, pela fixação da modulação, de modo a que a decisão passasse a surtir efeitos a partir do exercício financeiro de 2022, visando manter “intactas algumas situações já constituídas”, mas sugeriu que fossem expressamente ressalvados da modulação os processos administrativos ou judiciais em trâmite acerca da matéria. O julgamento havia sido suspenso, àquela altura, com pedido de vista do Min. Dias Toffoli, sendo que já haviam votado de modo a acompanhar o Relator a Min.ª Cármen Lúcia e o Min. Alexandre de Moraes.
Passados estes quase sete meses, o caso foi novamente levado a Plenário Virtual, tendo sido disponibilizada a minuta de voto do Min. Dias Toffoli, bem com a pronúncia de voto de mais alguns Ministros (Ricardo Lewandowski e Luiz Fux). Em seu voto escrito, o Min. Toffoli acompanhou o entendimento do Relator e do Min. Barroso no sentido de reconhecer “o direito dos contribuintes de não estornarem o crédito de ICMS concernente às operações anteriores”. De outro lado, no que se refere ao tratamento a ser dado a esses créditos (se poderiam ser transferidos com a mercadoria para o estabelecimento de destino), manifestou apenas que o tema haveria de ser regrado em lei complementar.
Recapitulando brevemente esse aspecto, a questão é que, da forma como a legislação previa a operação de transferência, quando uma mercadoria era remetida do Estado ‘A’ para o Estado ‘B’, o contribuinte pagava o ICMS para o Estado ‘A’ e se creditava desse imposto no Estado ‘B’, quando da entrada da mercadoria no estabelecimento de destino. Logo, o crédito era transferido junto com a mercadoria. Como não haverá mais a tributação quando da saída no Estado ‘A’, surgiu a dúvida sobre como ficará o crédito – se permanecerá no estabelecimento do Estado ‘A’ ou se poderá ser transferido para o Estado ‘B’.
Para o Min. Barroso, é imperioso que seja possível essa transferência, a fim de que se respeite a não-cumulatividade do ICMS ao longo da cadeia econômica, e sua proposta de modulação de efeitos é no sentido de que, “exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência dos créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, os sujeitos passivos [terão] o direito de transferir tais créditos”. Já o Min. Dias Toffoli, embora não tenha discordado do argumento do Min. Barroso, optou por não prever tal “consequência” desde logo, em caso de não regulamentação durante o período de eventual modulação, entendendo ser prematura essa determinação e que o tema, como já mencionado, precisaria ser regrado em sede de lei complementar.
Por fim, o Min. Toffoli propôs novos parâmetros para a modulação de efeitos, sugerindo que a decisão tenha eficácia após o prazo de 18 meses, contados da data de publicação da ata de julgamento dos embargos declaratórios, ressalvando as ações judiciais já propostas até a publicação do acórdão de mérito da ADC.
Fazendo-se um apanhado geral do julgamento até este momento, já se pode ter alguma segurança de que os Estados não poderão impor o estorno dos créditos das entradas em razão das transferências subsequentes – o que Fiscos Estaduais vêm tentando fazer, como se tem visto em algumas ações que tratam da matéria –, porquanto já há maioria formada de 7 votos no sentido da inaplicabilidade dessa exigência. Por outro lado, ainda não há muita clareza sobre a questão envolvendo a transferência dos créditos junto com as mercadorias, tampouco a respeito da modulação de efeitos (para a qual são necessários, pelo menos, 8 votos). O julgamento foi novamente suspenso por pedido de vista do Min. Nunes Marques.
O Escritório está monitorando o julgamento e fica à disposição para esclarecimentos a respeito da matéria.
Luis Carlos Fay Manfra,
Sócio na Pimentel & Rohenkohl Advogados.