Juíza federal aplica de forma retroativa norma que acabou com voto de qualidade
Por Laura Ignacio — De São Paulo
O Banco Inter conseguiu na Justiça reverter derrota sofrida no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e suspender cobrança de Cofins no valor atualizado de R$ 33 milhões. A instituição financeira obteve decisão judicial pela aplicação retroativa da norma que garante vitória ao contribuinte em caso de empate no Carf.
Desde a edição da Lei nº 13.988, em abril, contribuintes têm recorrido ao Judiciário contra julgamentos do Carf finalizados por meio do voto de qualidade – desempate por representante da Fazenda. Foi o caso do Banco Inter, que perdeu a disputa contra o Fisco no conselho, no ano passado.
A instituição financeira obteve tutela antecipada na Justiça Federal, com base na Lei 13.988. A norma inseriu na Lei nº 10.522, de 2002, o artigo 19-E. Pelo dispositivo, nos casos de empate, deverá ser adotado o entendimento mais favorável ao contribuinte. De acordo com a decisão da juíza Carla Dumont Oliveira de Carvalho, da 18ª Vara Federal Cível de Minas Gerais, “tratando-se o dispositivo [artigo 19-E] de norma de caráter meramente interpretativo, sua abrangência alcança os julgamentos administrativos ocorridos antes de sua edição”. Para ela, a retroação da lei é garantida pelo artigo 106 do Código Tributário Nacional (CTN).
Conforme o dispositivo do CTN, a lei aplica-se a ato ou fato pretérito, em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; e tratando-se de ato não definitivamente julgado.
A tutela antecipada (processo n° 1024238-49.2020.4.01.3800) determina exatamente o que temia o procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele justificou pedido de veto do artigo 19-E ao presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmando que a medida poderia embasar pedidos de restituição de tributos e multas já recolhidos com base em decisões por voto de qualidade. Procurado, o Banco Inter disse por nota que não se manifestará.
Após três meses da entrada em vigor da nova legislação, há cerca de 30 processos sobre o assunto sob os cuidados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). “Nossa linha de defesa é no sentido da impossibilidade do efeito retroativo porque os julgamentos realizados são atos jurídicos perfeitos”, afirma coordenador-geral da Representação Judicial da PGFN.
O procurador argumenta ainda que o artigo 19-E não traz regra interpretativa, mas de caráter processual, o que impediria a retroatividade. “O dispositivo estabelece novo rito, tem caráter de procedimento”, diz. Para ele, só é possível saber se uma tese vai vingar a partir do momento em que um colegiado de magistrados julga o assunto.
A nova regra de desempate não é ainda muito aplicada porque o Carf não tem previsão para a volta das sessões presenciais. Por enquanto, só tem julgado por videoconferência processos de valores abaixo de R$ 1 milhão, que em geral não eram os decididos por meio do voto de qualidade. Por nota, o Ministério da Economia diz que “pretende aumentar esse limite gradualmente, de acordo com a sua capacidade operacional de suporte aos julgamentos por videoconferência”.
Com processos semelhantes aos do Banco Inter em andamento na Justiça, advogados, também pedem a aplicação do artigo 106 do CTN a casos em que a Fazenda Nacional, por meio do voto de qualidade, conseguiu reverter na Câmara Superior derrotas sofridas em turmas ordinárias.
Para advogados, cabe ainda a aplicação do artigo 112 do CTN, segundo o qual “a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado”. Acrescentam que a nova legislação confirma que o voto de qualidade nunca poderia ter existido.
Sócios na área tributária também alegam que legislação mais benéfica ao contribuinte em relação a tema não definitivamente julgado deve sempre retroagir. “Defendemos que o processo administrativo é a primeira parte do processo porque se você perde ainda pode ir para o Judiciário. Assim, julgamento do Carf não é definitivo e a nova norma sobre voto de desempate pode retroagir.”
A tutela antecipada da Justiça mineira aplicando o efeito retroativo já foi protocolada em todos os casos semelhantes patrocinados escritório de advocacia, segundo advogados. “A decisão enfrentou um ponto que muitos contribuintes, inclusive pessoas físicas, estão levantando e deve subir para os tribunais superiores”, afirma.
A questão já está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Há duas ações diretas de inconstitucionalidade contra o fim do voto de qualidade. Uma (ADI 6399) foi apresentada pelo procurador-geral da República. A outra (ADI 6403) é do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em primeira instância, há pelo menos duas decisões a favor da inconstitucionalidade do artigo 19-E. Uma da 17ª Vara e outra da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (processos nº 1039686-98.2020.4.01.3400 e nº 1025934- 59.2020.4.01.3400, respectivamente). Uma empresa do Rio de Janeiro, porém, obteve o direito a um novo julgamento no Carf, após derrota por voto de qualidade, com base na Lei 13.988 (processo nº 5094299-45.2019.4.02.5101).
*Alterado
Fonte: Valor Econômico