Efetiva hipótese de disponibilização de lucros?
Não é de hoje que se discute se a alienação de participação societária em empresa localizada no exterior seria hipótese de disponibilização de lucros.
Até meados de 2016, a jurisprudência do CARF era firme no sentido de que a alienação de participação societária em controlada no exterior não se enquadra na expressão “emprego do lucro em favor da beneficiária”, a que se refere o art. 1°, § 2°, alínea b, item 4 da Lei n° 9.532/97, tampouco na hipótese de disponibilização dos lucros prevista no art. 43, do CTN.
Para surpresa dos contribuintes, em 2017 e 2018 a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) decidiu, por voto de qualidade, que a operação de alienação de participação societária figura como modalidade de realização dos lucros auferidos no exterior, dada a ausência de tributação no Brasil.
No entanto, a disputa ainda está longe do fim. Em recente decisão proferida pela 1ª Turma da 2ª Câmara da 1ª Seção do CARF, os membros do colegiado, por maioria, deram provimento ao Recurso Voluntário.
Como sabemos, a tributação dos lucros auferidos no exterior foi introduzida pelo art. 25, da Lei nº 9.249/95. A sistemática em questão, diferente das legislações comparadas de tributação de lucros em bases universais, passou a prever a tributação extraterritorial de lucros indisponíveis, o que levou a severas críticas. Primeiro, porque contrária ao art. 43 do CTN e segundo, porque nos acordos para evitar a dupla tributação com o Brasil, há vedação expressa à tributação de lucros não distribuídos, salvo hipóteses excepcionais.
A seguir, a Lei nº 9.532/97 revogou a sistemática anterior e previu taxativamente as hipóteses de disponibilização dos lucros auferidos no exterior, notadamente:
Em 27 de julho de 2001 foi editada a Medida Provisória n° 2.158-34, que prevê, em seu art. 74, parágrafo único, que os lucros seriam considerados disponibilizados em 31 de dezembro de cada ano, “salvo se ocorrida, antes dessa data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor”. Por sua vez, a Instrução Normativa n° 213/2002, em seu art. 1°, § 6º, novamente dispôs que alienação configura hipótese de disponibilização de lucros.
Mais recentemente, a Lei nº 12.973/2014 alterou o regime de tributação dos lucros no exterior. As controladas passaram a ser tributadas sobre parcela do ajuste do valor do investimento equivalente aos lucros por elas auferidos. Em resumo, os lucros das controladas no exterior podem ser consolidados em determinadas situações e, o resultado positivo da consolidação ou mesmo individual, deverá ser incluído no IRPJ e CSLL da controladora brasileira.
Como vimos, a Lei nº 12.973/2014 introduziu um conceito novo, o da tributação da “parcela do ajuste do valor do investimento” – PAVI, onde o art. 1º, §1º define como “os lucros auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior”. Para descrevê-lo, ninguém melhor que o saudoso Alberto Xavier:
“Esta arrevesada e gongórica nomenclatura visa não reconhecer formalmente que o objeto de tributação são os próprios lucros das empresas estrangeiras, e não o lucro da empresa brasileira decorrente da variação de valor dos investimentos, o que pode ter serias implicações jurídicas, teóricas e práticas, no que concerne à aplicação dos tratados contra a dupla tributação”
Parece-nos que a Lei nº 12.973/2014, diferente das anteriores, pretende alcançar todos os resultados positivos das empresas controladas no exterior, independentemente de sua disponibilização.
No entanto, o imposto sobre a renda somente pode atingir fatos que impliquem disponibilidade de renda a beneficiário residente no Brasil (art. 43 do CTN).
Como sintetizou Ricardo Mariz de Oliveira, disponibilidade é “a possibilidade que o proprietário do patrimônio tem de ter as rendas ou os proventos para fazer com eles o que bem entender”. Ou nas palavras de Luis Eduardo Schoueri, “há disponibilidade quando o beneficiário desta pode, segundo seu entendimento, empregar os recursos para a destinação que lhe aprouver.”
Sob o pálio da Lei nº 9.532/97 discutia-se se a alienação seria equivalente ao “emprego” dos lucros em favor da controladora no Brasil. Emprego é um ato jurídico praticado pelo sujeito ativo (controlada ou coligada no exterior), que transfira os lucros nele acumulados em seu patrimônio, para o patrimônio da respectiva controladora, tornando-os disponíveis. Tanto é assim que a Lei nº 9.532/97, art. 1º, §2º, b, 4, apontou como “emprego” o “aumento de capital” da controladora ou controlada no exterior.
Seria emprego, se a controladora brasileira determinasse à coligada que seus dividendos fossem utilizados em determinada finalidade, por exemplo, para extinguir determinada obrigação em seu nome ou para aumentar sua participação societária na própria investida? Parece-nos claro que não. No mais, consideramos que deve, necessariamente, haver deliberação da controladora para aplicação dos lucros acumulados em seu benefício.
Na alienação, os lucros acumulados continuam no patrimônio da controlada/coligada e consequentemente, a controladora no Brasil não tem “disponibilidade”. Assim, a alienação da participação societária não corresponde ao “emprego do lucro”, que continua a integrar o patrimônio da empresa estrangeira até posterior deliberação.
Textualmente, temos, portanto, que o fato “alienação de participação societária” somente é considerado como “hipótese de disponibilização de lucros” por Instruções Normativas (IN 38/96, IN 213/2002 e IN 1520/2014), o que é inadmissível, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Ag. Int. no REsp 1749745/SP:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. IRPJ E CSLL. LUCROS AUFERIDOS POR EMPRESAS COLIGADAS OU CONTROLADAS, SEDIADAS NO EXTERIOR. TRIBUTAÇÃO DOS RESULTADOS POSITIVOS DE EQUIVALÊNCIA PATRIMONIAL DE INVESTIMENTOS NO EXTERIOR. INSTRUÇÃO NORMATIVA 213/2002. ILEGALIDADE. AGRAVO INTERNO DA FAZENDA NACIONAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
Por tal razão, afigura-se mais do que evidente a ausência de base legal para servir de fundamento para o presente lançamento tributário, o que, por si só, invalida a presente autuação por clara afronta ao princípio da legalidade tributária.”
(Data de Julgamento de 02/04/2019)
Nesse sentido também é a sentença proferida pela Juíza da 11ª Vara Federal em São Paulo, Exma. Dra. Regilena Emy Fukui Bolognesi, nos autos da Ação Ordinária nº 0001709-59.2015.4.03.6100:
“A alienação da coligada no exterior para pessoa jurídica sócia da autuada no Brasil, com entrega de seu investimento, não implica qualquer hipótese de pagamento prevista na lei. Ressalte-se, ainda, que esta não pode ser interpretada de maneira ampla, de modo a abarcar outras hipóteses não previstas na norma legal, eis que não cabe ao aplicador da lei criar um direito novo.
Em todas as hipóteses de disponibilização de lucros por meio de pagamento instituída pelo legislador (alínea b, no qual se insere o emprego de valor – item 4), há saídas de recursos do ativo da controlada ou da coligada no exterior. Isso não ocorre na entrega de sua participação societária no exterior, pela coligada – participante no Brasil, em favor de pessoa jurídica, que seja sua sócia no Brasil, por alienação”. (…)
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido e declaro a nulidade do auto de infração que originou o processo administrativo n. 16327.001265/2005-03.
Vejam que, em termos práticos, a controladora brasileira ao alienar sua participação societária no exterior auferirá ganho de capital, tributado pelo imposto de renda brasileiro, nos termos do art. 25 da Lei nº 9.249/95. Logo, os lucros não distribuídos serão refletidos no preço pago pelo adquirente e tributados na forma de ganho de capital.
Com efeito, o argumento de que os lucros acumulados representam forma de “emprego” ou “disponibilização” para a controladora no Brasil implica em dupla tributação econômica do mesmo rendimento: uma no suposto “emprego” e outra como ganho de capital auferido na alienação do investimento.
E, mesmo sob a égide da Lei nº 12.973/2014, nosso sistema jurídico não admite que seja tratado como “renda disponível” aquilo que não faz parte do patrimônio do beneficiário. Portanto, a alienação de participação societária não pode ser considerada como hipótese de disponibilização dos lucros auferidos no exterior por intermédio de controlada ou coligada.
Diante desse cenário normativo e jurisprudencial, a temática em questão continuará a ter destaque e a desafiar os tribunais administrativos e judiciais na busca de soluções satisfativas que cuidem de garantir a devida valoração da prova e observem os reais impactos em concreto.
Fonte: JOTA