Decisões beneficiam pessoas que caíram na malha fina da Receita Federal
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) começou a aplicar a nova regra que impôs o fim do chamado voto de qualidade. Ao menos em três decisões em que houve empate, o contribuinte acabou por vencer a disputa, ao contrário do que acontecia antes. O voto de qualidade era o desempate pelo presidente da turma, sempre um representante da Fazenda Nacional.
As três decisões foram proferidas pela 2ª Turma Extraordinária da 2ª Seção. Todas beneficiam contribuintes que caíram na “malha fina” da Receita Federal por causa da declaração de pensão alimentícia. Eles foram autuados por omissão de rendimentos sobre os quais, segundo o Fisco, incidiria o Imposto de Renda da Pessoa Física.
O procurador Moisés de Sousa Carvalho, que coordena a atuação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no Carf, diz que das três decisões, uma não decorre da mudança no voto. “Como a presidente da turma votou a favor do contribuinte, o resultado seria idêntico na sistemática tradicional do voto de qualidade”, afirma. Sobre os outros dois casos, a PGFN analisará se cabe recurso.
As sessões presenciais do Carf estão suspensas por causa da pandemia. Mas as turmas extraordinárias, que recebem casos de até 120 salários mínimos, passaram a fazer julgamentos virtuais. E, a partir de junho, as turmas ordinárias e da Câmara Superior começam a julgar, por videoconferência, processos sobre autuações de até R$ 1 milhão.
Ainda não há notícias de aplicação da nova regra em grandes causas, onde o voto de qualidade era mais usado. Em 2019, por exemplo, a B3 perdeu na Câmara Superior um processo de R$ 2,6 bilhões (processo nº 16327. 720387/2015-66).
O voto de qualidade foi eliminado pelo artigo 28 da Lei nº 13.988, publicada em abril. A medida, segundo o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), pode causar perda de arrecadação de cerca de R$ 60 bilhões ao ano.
O presidente do Sindifisco, explica que os cálculos foram feitos com base em dados repassados pelo próprio Carf. De 2017 a 2019, R$ 182 bilhões em autuações foram mantidas pelo conselho, a favor da Fazenda Nacional, por voto de qualidade. Na divisão desse montante por três anos, portanto, seriam R$ 60 bilhões anuais.
Para o Presidente, com a nova regra, as autuações antes mantidas por voto de qualidade serão derrubadas. “Nem tudo seria cobrável, mas é um volume expressivo de créditos tributários exigíveis. O Judiciário não dá, na maioria das vezes, vitória aos contribuintes”, diz.
O impacto financeiro, destaca o auditor, poderá ser ainda maior por causa de prováveis perdas de arrecadação espontânea. “É comum as grandes empresas adotarem o entendimento do Carf para não terem problemas com o Fisco. Mas a partir da mudança de entendimento que deverá ocorrer, esse compliance deverá mudar e a arrecadação deverá ser muito menor”, afirma.
Em vez de estimar o impacto financeiro da mudança, faz mais sentido avaliar quais causas levaram o Congresso a mudar a legislação, segundo o advogado tributarista “Não existe impacto daquilo que não é devido. Os R$ 60 bilhões me parecem mais uma tentativa de impressionar, aterrorizar”, diz.
Para o advogado, é preciso considerar o percentual de autos de infração confirmados no Carf com o voto de qualidade, mas que são derrubados por decisão da Justiça. Ele lembra ainda que a discussão judicial tem custos para a União. “Para rodar a máquina do Judiciário, a remuneração dos procuradores e os honorários de sucumbência, que são devidos ao contribuinte quando ele vence”, afirma.
Empresas do grupo Gerdau, por exemplo, foram autuadas em aproximadamente R$ 5 bilhões por uma reestruturação realizada pela siderúrgica no ano de 2004. As cobranças foram mantidas pela Câmara Superior, mas ao menos duas decisões judiciais foram favoráveis à companhia (processo nº 0143649-58.2017.4.02.5101 e processo nº 5058075-42.2017.4.04.7100).
O impacto indicado pelo Sindifisco Nacional foi inserido na ação direta de inconstitucionalidade da Procuradoria-Geral da República (ADI nº 6399), que contesta no Supremo Tribunal Federal (STF) o fim do voto de desempate. A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) já entrou com pedido para entrar como “amicus curiae” (parte interessada). “Na prática, o voto de qualidade era um voto duplo, em dobro a favor do Fisco”, afirma o superintendente jurídico da CNI.
De acordo com ele, não haverá perda de receita na proporção de R$ 60 bilhões ao ano porque os cálculos feitos pelo Sindifisco não refletem a realidade. “Na maioria das vezes, quando perde, o contribuinte recorre ao Judiciário, onde obtém várias vitórias. Assim, esses R$ 60 bilhões nunca foram efetivamente receita garantida”, diz.
O diretor jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), afirma ainda que não é possível fazer estimativa prevendo que todos os autos de infração serão derrubados em razão do fim do voto de qualidade. Contudo, ele destaca que revisões no contencioso administrativo são necessárias. “A procuradoria diz que foi prejudicada porque não pode ir ao Judiciário. Assim, poderia passar a haver, por exemplo, a arbitragem tributária”.
Fonte: Valor Econômico