A Receita Federal publicou, em 10/11/2025, a Instrução Normativa nº 2.288/2025, introduzindo alguns requisitos adicionais à habilitação de créditos amparados em título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo.
Dentre as disposições, a RFB passa a exigir alguns documentos complementares para a habilitação nessa hipótese, a saber: petição inicial da ação; estatuto da entidade impetrante vigente na data do protocolo do mandado de segurança coletivo; cópia do contrato social ou do estatuto da pessoa jurídica vigente na data do ingresso na categoria ou da filiação; documento que comprove a data de associação ou o ingresso na categoria e, caso aplicável, a data de saída; e inteiro teor da decisão judicial transitada em julgado (art. 102, §1º-A).
A IN também prevê que, caso a decisão judicial proferida no mandado de segurança coletivo não tenha delimitado o grupo de beneficiários, o deferimento da habilitação depende da confirmação, pelo Auditor Fiscal, de que: (i) o substituto possuía objeto determinado e específico à época da impetração; e (ii) o substituído é filiado à associação ou integrante da categoria profissional, desde que essa condição esteja amparada pela abrangência territorial e finalística do substituto definida à época da impetração do mandado de segurança coletivo (art. 103-A).
Ainda, a nova norma estabelece uma restrição temporal, dispondo que o direito creditório do substituído se aplica somente a fatos geradores posteriores à filiação, à associação ou ao ingresso na categoria, e é condicionado à manutenção dessa condição (art. 103-A, §1º).
Com esse movimento, a RFB busca restringir a fruição de créditos tributários originados em ações mandamentais coletivas promovidas por associações de escopo genérico. Essa prática ganhou notoriedade nos últimos tempos: uma associação com escopo extremamente amplo (capaz de abranger virtualmente qualquer empresa ou contribuinte) passa a promover mandados de segurança coletivos sobre temas tributários e, vindo a obter títulos judiciais favoráveis, busca angariar “associados” ofertando a fruição desses títulos judiciais. Trata-se de atividade qualificada por muitas autoridades como “litigância predatória” e que, a bem da verdade, acaba por desvirtuar as nobres finalidades desse importante instrumento de tutela coletiva.
Não obstante a (aparentemente) legítima finalidade da IN nº 2.288/2025, que visa obstar os abusos de forma praticados por essas “entidades”, também não se pode ignorar, por outro lado, os aspectos preocupantes da nova normatização no que se refere à fruição de títulos judiciais formados em mandados de segurança coletivos promovidos por entidades idôneas. Explica-se.
No STF, muito já se discutiu a respeito dos limites para a execução de títulos judiciais obtidos em ações de natureza coletiva. Nos Temas nº 82 (RE nº 573.232) e 499 (RE nº 612.043), a Suprema Corte decidiu que, para a execução de títulos judiciais formados em ações coletivas de rito ordinário, promovidas por associações, nos termos do art. 5º, XXI, da CF/88, faz-se necessária a autorização expressa dos associados (individual ou em assembleia) e a apresentação da respectiva lista com a inicial. Conforme a tese fixada no Tema nº 499, “a eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento”.
Esse entendimento, todavia, não alcança ações promovidas por sindicados (art. 8º, III, da CF/88) ou mandados de segurança coletivos (art. 5º, LXX, ‘b’, da CF/88). É que, conforme distinção feita pelo próprio STF, nessas duas hipóteses, o caso é de substituição processual, e não de representação processual (como ocorre no art. 5º, XXI, da CF/88).
Orientado por essa premissa, em 2020, o STF julgou o Tema nº 1.119 (ARE nº 1.129.130), no qual fixou a seguinte tese em relação aos mandados de segurança coletivos:
É desnecessária a autorização expressa dos associados, a relação nominal destes, bem como a comprovação de filiação prévia, para a cobrança de valores pretéritos de título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade associativa de caráter civil.
Nesse julgado, em sede de embargos de declaração, o Min. Luís Roberto Barroso chegou a reforçar que a Corte não estava a analisar a situação das chamadas “associações genéricas, que não representam quaisquer categorias econômicas e profissionais específicas, como é o caso da ANCT”. O tema, de fato, veio a ser endereçado mais especificamente em outros casos, como no ARE nº 1.293.495-ED-AgR-ED-2 (14/03/2022) e no ARE nº 1.339.496 AgR (07/02/2023), oportunidades em que o STF reconheceu a mera criação e registro da associação não autoriza, por si, a autêntica legitimação ativa, fazendo-se necessário que a associação determine, minimamente, o seu objeto social, definindo o conjunto de seus associados. Nesses dois casos, reconheceu-se a ilegitimidade ativa das associações.
À luz desse contexto, e retornando para a situação específica da nova IN editada pela RFB, há pelo menos dois pontos que suscitam alguma preocupação.
A primeira está relacionada à avaliação pelo Auditor Fiscal, quanto ao caráter específico e determinado do objeto da entidade ao tempo da impetração. Embora seja legítima a intenção de se evitar abusos com as referidas entidades genéricas, a competência para determinar se o objeto da entidade é genérico ou específico, a rigor, não é do Auditor Fiscal da RFB, mas sim do Juiz que julgou o processo. Trata-se de uma questão de determinação da legitimidade ativa da entidade para atuar em nome de seus associados como substituto processual. O grande receio, nesse sentido, é permitir que os Auditores comecem a realizar “revisões” de conteúdo das decisões transitadas em julgado.
Já a segunda diz respeito à limitação temporal estabelecida no art. 103-A, §1º, segundo a qual a fruição do direito creditório pelo substituído somente se aplica a fatos geradores posteriores à filiação, associação ou ingresso na categoria. Ocorre que essa restrição não encontra amparo no Tema nº 1.119 do STF, em que se reconheceu a possibilidade de extensão dos efeitos das decisões coletivas em ações mandamentais a associados filiados após a data da impetração, sem nenhuma restrição temporal quanto ao período pretérito. Aliás, a tese desse julgado, conforme transcrita acima, é explícita ao admitir a “cobrança de valores pretéritos”. Uma distinção dessa natureza, inclusive, pode suscitar questionamentos sob a ótica da igualdade entre os associados (novos e antigos).
Como se pode concluir, a RFB, na busca de restringir abusos cometidos por associações de caráter genérico (finalidade legítima), acabou por incorrer em alguns aparentes excessos, os quais podem vir a prejudicar entidades idôneas e seus filiados.
O certo é que, se antes da IN já era preciso ter cuidado na fruição de direitos creditórios originados em mandados de segurança coletivos, a cautela a partir de agora deve ser redobrada. É crucial examinar em detalhe qual o escopo da entidade e da ação coletiva proposta, para se compreender adequadamente as possibilidades e os riscos envolvidos em eventual habilitação de crédito perante a RFB.
O escritório está atento ao tema e à disposição para quaisquer esclarecimentos.
Luis Carlos Fay Manfra
Sócio da P&R Advogados Associados
¹ Trata-se de distinção técnica que, para os propósitos deste artigo, pode ser sintetizada nos seguintes termos: na substituição processual, o substituto é parte, que vai a juízo em nome próprio para a defesa de interesse alheio; na representação processual, o representante não é parte, ele vai a juízo em nome do representado, ou seja, atua em nome de outrem.
Ao examinar o art. 5º, XXI, da CF/88, segundo o qual “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”, o STF enfatizou as expressões “expressamente autorizadas” e “representar”, para concluir que a hipótese é de representação processual, que demanda expressa e prévia autorização dos representados para a associação.
² Em sentido similar, já previa a Súmula 629 do STF: “A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes.”
³ Associação Nacional dos Contribuintes de Tributos.