O cenário tributário brasileiro, notoriamente complexo e dinâmico, está prestes a vivenciar uma mudança de paradigma com a iminente sanção presidencial do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 125/2022, após aprovação pela Câmara de Deputados. Este PLP, que tem sido referenciado como o “Código de Defesa do Contribuinte”, propõe a instituição de normas gerais que regerão a relação entre o Fisco e os contribuintes em todo o território nacional. Seu principal objetivo é aprimorar a segurança jurídica, reduzir a litigiosidade e, acima de tudo, fomentar uma cultura de conformidade fiscal cooperativa, porém, também, apresenta o novo conceito de devedor contumaz, que poderá trazer diversos desafios.
Os Pilares da Nova Relação Fisco-Contribuinte: Deveres da Administração e Direitos do Contribuinte
Uma das inovações mais significativas do PLP é a explícita normatização dos deveres da administração tributária. A proposta vai além dos princípios constitucionais e infraconstitucionais já existentes, detalhando condutas que se espera do Fisco e em conformidade com a nova estrutura tributária introduzida pela Reforma. Entre os deveres mais relevantes, destacamos:
– Redução da Litigiosidade: O PLP incentiva a utilização de formas alternativas de resolução de conflitos, o que pode abrir portas para uma solução mais célere e menos onerosa de disputas tributárias.
– Presunção da Boa-fé do Contribuinte: Um ponto crucial, que exige que a administração presuma a boa-fé do contribuinte em seus atos, ressalvadas as diligências e auditorias cabíveis. Isso pode mitigar a postura, por vezes, excessivamente fiscalizatória do Fisco.
– Facilitação e Auxílio: O Fisco terá o dever de facilitar e auxiliar o cumprimento das obrigações tributárias, adequando seus meios para impor a menor onerosidade possível aos contribuintes.
Transparência e Orientação: Inclui a promoção de ações e campanhas de orientação, bem como a disponibilização de canais de comunicação para manifestações dos contribuintes.
– Autorregularização: É previsto o direito à autorregularização de débitos e obrigações acessórias antes da lavratura de autos de infração, mediante programas de conformidade.
A Estratégia da Classificação: “Bons Pagadores” e “Devedores Contumazes”
Talvez a mudança mais impactante e inovadora trazida pelo PLP 125/2022 seja a criação de um sistema de classificação e tratamento diferenciado para os contribuintes, dividindo-os em duas categorias distintas: os Bons Pagadores e Cooperativos e os Devedores Contumazes.
1- Contribuintes Bons Pagadores e Cooperativos:
A proposta prevê a criação de programas de conformidade tributária e aduaneira, com adesão voluntária, que visam incentivar o cumprimento espontâneo das obrigações e estabelecer um relacionamento mais próximo e cooperativo entre o Fisco e os contribuintes. Os principais programas são:
– Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia): Destinado a pessoas jurídicas que possuem governança corporativa tributária e sistema de gestão de conformidade fiscal robustos. Oferece benefícios como canais de comunicação personalizados, renovação colaborativa de certidões e interlocução prévia em pedidos de compensação/restituição. Permite ainda a autorregularização com redução ou não incidência de multas em certas condições. Importante: contribuintes admitidos no Confia não serão qualificados como devedores contumazes.
– Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (Sintonia): Classifica os contribuintes com base na regularidade cadastral, recolhimento de tributos, cumprimento de obrigações acessórias e exatidão das informações. Oferece prioridade na análise de pedidos de restituição e atendimento. Para contribuintes com bom histórico, mas com capacidade de pagamento momentaneamente reduzida, permite a autorregularização com redução de até 70% de multas e juros moratórios e prazos alongados.
– Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (Programa OEA): Voltado para operações de comércio exterior, busca fortalecer a segurança da cadeia de suprimentos e agilizar procedimentos aduaneiros para intervenientes que cumpram critérios específicos. Oferece menor índice de verificação no despacho aduaneiro e pagamento diferido de tributos na importação. A caracterização como devedor contumaz impede a adesão ao OEA.
Aos contribuintes que aderirem e se destacarem nestes programas serão concedidos Selos de Conformidade Tributária e Aduaneira (SCTA) (Selo Confia, Selo Sintonia, Selo OEA), que conferirão benefícios adicionais, como bônus de adimplência fiscal (desconto progressivo na CSLL), vedação ao arrolamento de bens e preferência em licitações públicas.
2- O Devedor Contumaz:
Em contrapartida à política de incentivo à conformidade, o PLP 125/2022 introduz a figura do devedor contumaz, definindo-o como o sujeito passivo cuja inadimplência de tributos é substancial, reiterada e injustificada.
A caracterização como “devedor contumaz” não é arbitrária, mas sim balizada por critérios rigorosos e objetivos definidos no Art. 11 do PLP. Para que um contribuinte seja enquadrado nesta categoria, sua inadimplência de tributos deve possuir, simultaneamente, as seguintes características:
– Substancial: Em âmbito federal, a dívida ativa ou créditos constituídos e não adimplidos devem totalizar valor igual ou superior a R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais) e equivaler a mais de 100% do seu patrimônio conhecido (ativo total do último balanço patrimonial registrado). Para Estados, Distrito Federal e Municípios, esses valores e critérios podem ser definidos em legislação própria, mas, na ausência dela, aplicam-se os critérios federais após um ano da entrada em vigor da lei. Para o cálculo deste montante, são deduzidos, por exemplo, créditos com exigibilidade suspensa por decisão judicial, aqueles em parcelamento adimplente ou em transação tributária, e os que são objeto de controvérsia jurídica relevante e disseminada.
– Reiterada: O contribuinte deve manter créditos tributários em situação irregular em, no mínimo, 4 (quatro) períodos de apuração consecutivos ou em 6 (seis) períodos de apuração alternados, dentro do prazo de 12 (doze) meses.
– Injustificada: Não pode haver motivos objetivos que justifiquem a inadimplência. Circunstâncias como estado de calamidade pública reconhecido pelo poder público, apuração de resultado financeiro negativo no exercício corrente e anterior (sem indícios de fraude ou má-fé) ou a ausência de fraude à execução em caso de execução fiscal (como não ocorrência de distribuição de lucros/dividendos ou redução de capital) podem afastar a contumácia. Contudo, a consistência e veracidade das informações cadastrais e da escrituração das obrigações acessórias são fundamentais para comprovar tais motivos.
Adicionalmente, a lei estende a caracterização de devedor contumaz a sujeitos passivos que sejam partes relacionadas de pessoas jurídicas baixadas ou declaradas inaptas nos últimos 5 anos com créditos tributários irregulares que totalizem valor igual ou superior a R$ 15.000.000,00, ou que sejam relacionadas a um devedor contumaz já qualificado. Esses critérios detalhados visam garantir que a classificação seja aplicada apenas àqueles que demonstram um padrão deliberado e persistente de descumprimento de suas obrigações fiscais.
A identificação como devedor contumaz não é um processo sumário; prevê um processo administrativo com notificação prévia, direito de defesa e prazo para regularização. Contudo, uma vez caracterizado, as consequências são extremamente severas e podem impactar drasticamente a continuidade das atividades empresariais:
– Impedimentos: Proibição de fruir benefícios fiscais (incluindo remissões e anistias), de participar de licitações públicas, de formalizar vínculos com a administração pública.
– Impacto na Recuperação Judicial: Impedimento de propositura ou prosseguimento de recuperação judicial, podendo motivar a convolação em falência.
– Inaptidão Cadastral: Declaração de inaptidão da inscrição no cadastro de contribuintes.
– Penalidades Agravadas: O PLP altera diversas leis, incluindo o Código Penal (artigos 168-A e 337-A), para que a condição de devedor contumaz afaste a possibilidade de extinção da punibilidade por pagamento em crimes contra a ordem tributária, além de limitar benefícios como parcelamentos especiais e a utilização de créditos.
Implicações Estratégicas para o Setor Empresarial
As disposições do PLP 125/2022 exigem uma reavaliação profunda das estratégias de gestão tributária e de compliance das empresas. Para as organizações que já cultivam uma cultura de conformidade e boa governança, esta lei representa uma oportunidade para obter vantagens competitivas e uma relação mais favorável com o Fisco através da adesão aos programas de conformidade e obtenção dos selos. A redução da burocracia, a agilidade em processos e a mitigação de riscos fiscais são benefícios tangíveis.
Por outro lado, para empresas com histórico de débitos significativos e reincidentes, a legislação acende um sinal de alerta máximo. A caracterização como devedor contumaz impõe sanções que podem inviabilizar o negócio, afetando desde a capacidade de obtenção de incentivos fiscais até a própria continuidade operacional, especialmente para aquelas que dependem de contratos públicos ou que buscam reestruturação via recuperação judicial.
Nosso escritório está à disposição para auxiliar sua empresa a navegar por este novo cenário, realizando análises de impacto, revisando procedimentos de compliance e fornecendo toda a assessoria necessária para garantir a conformidade e otimizar a relação com o Fisco, transformando desafios em oportunidades. A adaptação antecipada a esta nova legislação será um diferencial competitivo crucial.
Vinícius da Silva Zanuzzi
Advogado na P&R Advogados Associados