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30/10/2025

Conversão dos Embargos à Execução Fiscal em Ação Anulatória nos casos de compensação não homologada e a necessidade de segurança jurídica: atualização jurisprudencial

Nos últimos anos, inúmeras empresas têm enfrentado um obstáculo de natureza estritamente processual que, em muitos casos, impede o exame de mérito de discussões relevantes sobre compensações tributárias indeferidas pela Receita Federal: a negativa judicial de processamento dos Embargos à Execução Fiscal propostos antes da mudança jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2021.
O problema surge, em regra, em situações em que o contribuinte, ao ser autuado em execução fiscal, opôs embargos fundados na alegação de compensações regularmente declaradas na via administrativa, o que, até então, era plenamente admitido pela jurisprudência consolidada do STJ, conforme o Tema 294 (REsp 1.008.343/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 2009).

À época, o Tribunal reconhecia expressamente a possibilidade de que a compensação efetuada antes do ajuizamento da execução figurasse como fundamento de defesa nos embargos, desde que atendidos os requisitos legais da compensação tributária.
Contudo, o entendimento foi reinterpretado pela Primeira Seção do STJ no julgamento dos EREsp 1.795.347/RJ (outubro de 2021), passando a prevalecer a tese de que não pode ser deduzida em embargos à execução fiscal compensação não homologada administrativamente, à luz do art. 16, §3º, da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais).
A partir dessa guinada jurisprudencial, multiplicaram-se as decisões de extinção sem julgamento de mérito de embargos opostos sob a égide do entendimento anterior, em razão da suposta “inadequação da via eleita”. Ocorre que essas ações foram ajuizadas quando o Tema 294 ainda estava vigente e vinculava os juízos e tribunais, o que evidencia um cenário de quebra de confiança legítima e violação à segurança jurídica.

A solução pela conversão em ação anulatória

Diante desse contexto, defende-se que, por razões de segurança jurídica e primazia do mérito, deve-se admitir a conversão dos Embargos à Execução Fiscal em Ação Anulatória, permitindo-se o prosseguimento do processo com aproveitamento integral dos atos processuais já praticados.
Trata-se de medida amparada em princípios estruturantes do processo civil, como a instrumentalidade das formas, a boa-fé objetiva, a cooperação processual, a economia processual e a razoável duração do processo (arts. 4º, 6º, 8º, 188 e 277 do CPC, e arts. 5º, XXXV, LIV, LV e LXXVIII da Constituição Federal).
A conversão é, ademais, compatível com a natureza jurídica dos embargos, que, conforme reconhece o Superior Tribunal de Justiça, possuem caráter cognitivo análogo ao da ação ordinária. Em ambas as hipóteses, busca-se a desconstituição do crédito fiscal, com ampla cognição e plena produção de provas. Essa identidade de finalidade e estrutura reforça o caráter fungível entre as ações, de modo que o equívoco formal quanto ao rito processual não pode servir de óbice à solução de mérito.

Essa identidade de natureza entre os embargos e a ação anulatória já foi expressamente reconhecida pelo STJ. No Conflito de Competência nº 89.267/SP, a Corte consignou que “ações dessa espécie têm natureza idêntica à dos embargos do devedor, e quando os antecedem, podem até substituir tais embargos, já que repetir seus fundamentos e causa de pedir importaria litispendência”. Em linha convergente, o Tribunal reafirmou, no AgRg no AREsp nº 129.803/DF, que há competência absoluta do juízo executivo para processar e julgar ambas as ações, por se tratarem de demandas conexas e de mesma natureza cognitiva: “havendo conexão entre execução fiscal e ação anulatória de débito fiscal, impõe-se a reunião dos processos, de modo a evitar decisões conflitantes; espécie em que, ajuizada primeiro a execução fiscal, o respectivo juízo deve processar e julgar ambas as ações”.

Nessa mesma direção, o STJ também assentou, no REsp nº 1.616.467/RN (Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 26/09/2022), que havendo identidade de partes, causa de pedir e pedido, está configurada a litispendência da ação anulatória com os embargos à execução. Ora, se as ações são consideradas idênticas para fins de litispendência e de competência, também o são para fins de conversão e aproveitamento dos atos processuais já praticados, em respeito aos princípios da instrumentalidade das formas, segurança jurídica e primazia da decisão de mérito.

Resistência inicial e atualização jurisprudencial

Nos primeiros anos que se seguiram ao julgamento do EREsp 1.795.347/RJ (STJ, 2021), a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais mostrou-se majoritariamente contrária à conversão dos embargos à execução fiscal em ação anulatória. As decisões, em sua maioria, relutavam em admitir a adequação processual, sobretudo quando o processo já se encontrava em fase instrutória, sob o argumento de que a chamada “angularização processual” impediria a modificação do rito.

Essa interpretação, fortemente formalista, acabava por privilegiar a forma em detrimento da substância, impedindo o exame do mérito de ações ajuizadas em conformidade com a jurisprudência então pacificada do Tema 294 do STJ. Até recentemente, os casos em que se admitia a conversão eram pontuais e isolados, resultantes de decisões sensíveis à boa-fé do contribuinte e à preservação dos atos processuais.

Especialmente a partir de 2025, contudo, o cenário começou a se modificar de forma mais favorável à conversão de rito. Decisões recentes de varas federais e das Turmas do TRF-3, TRF-4 e TRF-6 passaram a reconhecer a viabilidade da conversão como medida de racionalidade e justiça processual, permitindo o aproveitamento dos atos já praticados e garantindo o julgamento de mérito de discussões relevantes sobre compensações tributárias.

Decisões relevantes nesse sentido foram proferidas pelo TRF-3, TRF-4 e TRF-6.

O TRF-3, por exemplo, nos julgamentos muito recentes da Apelação Cível nº 5017205-15.2020.4.03.6182 (Itaú Unibanco) e da Apelação nº 0045061-25.2009.4.03.6182 (Unilever Brasil), reconheceu expressamente a possibilidade de conversão dos embargos em ação anulatória, enfatizando que essa solução concretiza os princípios da economia processual e da primazia da decisão de mérito. Tal posicionamento também se verifica nos julgamentos da Apelação Cível n.º 5001800-14.2024.4.03.6144 e do Agravo de Instrumento n.º 5001256-62.2023.4.03.0000.

No mesmo sentido, o TRF-6 (AI 6005009-55.2025.4.06.0000,) afirmou ser possível a conversão em razão da boa-fé objetiva e da mutação jurisprudencial, considerando que, à época do ajuizamento, vigorava a jurisprudência consolidada do Tema 294/STJ.

Ainda, o TRF-3 vem admitindo pedidos de conversão em primeira instância, com destaque para a recente decisão da 12ª Vara Federal de Execuções Fiscais de São Paulo (Processo nº 0018079-27.2016.4.03.6182, Banco Santander). Também se destacam as decisões da 8ª Vara de Execuções Fiscais de São Paulo (Processo nº 0005187-86.2016.4.03.6182), da 7ª Vara (Processo nº 5003298-07.2019.4.03.6182) e da 13ª Vara (Processo nº 0012727-20.2018.4.03.6182), todas assentando que a mudança jurisprudencial não pode impedir o acesso à jurisdição, tampouco há qualquer prejuízo à Fazenda.

Essas decisões representam um amadurecimento institucional importante: o reconhecimento de que a boa-fé e a confiança na jurisprudência vigente não podem se transformar em armadilhas processuais que inviabilizem o julgamento de mérito de questões tributárias relevantes e tecnicamente fundadas.
No TRF-4, por sua vez, localiza-se entendimento semelhante em decisões, como na AC 5049744-17.2016.4.04.7000/PR e na AC 5000219-46.2015.4.04.7115/RS).

Como visto, a discussão sobre a conversão dos embargos à execução fiscal em ação anulatória transcende a esfera técnica. Trata-se de um tema de segurança jurídica e coerência institucional.

Os contribuintes que ajuizaram seus embargos amparados em entendimento jurisprudencial consolidado não podem ser penalizados pela mudança posterior de orientação dos tribunais. O reconhecimento da conversão como solução adequada preserva a confiança legítima, evita a duplicidade de processos, reduz o congestionamento judicial e viabiliza o julgamento do mérito, em plena consonância com a Constituição e com os valores estruturantes do novo CPC.

A tendência recente dos Tribunais Regionais Federais aponta para uma evolução relevante, com decisões que restauram o equilíbrio entre forma e substância, assegurando que o processo cumpra sua finalidade essencial de garantir justiça e segurança jurídica.

Eduardo Floriani Marques
Advogado na P&R Advogados Associados

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