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11/09/2025

Código de Defesa do Contribuinte: nova perspectiva sobre a relação fiscal do devedor contumaz

Recentemente, o Senado Federal aprovou de modo unânime o projeto que visa instituir o Código de Defesa do Contribuinte (PLP 125/2022). Esta iniciativa é considerada um marco significativo, buscando estabelecer um novo conjunto de normas para a interação entre o Fisco e a sociedade, ao mesmo tempo em que define garantias fundamentais para os contribuintes. A expressividade da votação sinaliza o reconhecimento, por parte do Congresso, da necessidade premente de modernizar o sistema e de corrigir antigas falhas que contribuem para um cenário de incerteza jurídica.

No entanto, apesar das inegáveis melhorias apresentadas pelo texto, a seção que aborda o devedor contumaz (artigos 11 a 17) merece uma análise mais cuidadosa. Ao introduzir essa categoria, o direito tributário parece passar a encarar o devedor contumaz não mais apenas como um contribuinte com obrigações fiscais perante o Estado, mas sim como uma persona a ser neutralizada, de forma análoga ao que se observa no direito penal do culpado.

O propósito da legislação é válido, combater indivíduos e empresas que estruturam suas operações com base na inadimplência tributária, cometendo fraudes, crimes, ocultando bens e gerando uma concorrência desleal. O desafio, contudo, reside na vasta abrangência da definição legal e na maneira como ela poderá ser aplicada na prática. Conforme o artigo 11, será classificado como devedor contumaz aquele que apresentar uma inadimplência substancial, reiterada e injustificada.

Os dois primeiros critérios foram estabelecidos de forma objetiva: no âmbito federal, a substancialidade se configura por débitos iguais ou superiores a R$ 15 milhões que excedam o patrimônio conhecido; a reiteração ocorre quando os créditos permanecem em situação irregular por quatro períodos consecutivos ou seis alternados em um intervalo de doze meses. Por outro lado, a exigência de que a inadimplência seja “injustificada” gera uma imensa margem de ambiguidade, visto que o legislador não especificou o que seria uma justificativa aceitável ou inaceitável, tornando-o um critério genérico.

Tal formulação resulta em uma prerrogativa que confere ao Fisco a capacidade de julgar, em cada situação, se a falta de pagamento decorre de má-fé ou de dificuldades financeiras legítimas. Esta discricionariedade pode transformar um instrumento pensado para combater grandes fraudadores em uma ferramenta perigosa contra empresas que estão apenas enfrentando crises econômicas pontuais, como quedas abruptas no faturamento, retração de mercado ou dificuldade momentânea de acesso a crédito. Nesses cenários, existe o risco de que o contribuinte agindo de boa-fé, que não esconde patrimônio nem comete fraudes, seja equiparado a um sonegador e submetido às severas sanções detalhadas no artigo 13.

Nesse contexto, como a caracterização do devedor contumaz será definida por cada ente federativo, e dada a ausência de parâmetros claros para determinar o que constitui inadimplência injustificada, abre-se espaço para interpretações divergentes entre a União, os estados e os municípios. Na prática, a falta de uniformidade tende a causar acentuada insegurança jurídica e pode gerar uma enxurrada de litígios tributários no Poder Judiciário, focados em discutir a própria definição de contumácia, sob a ótica da inadimplência não justificada.

Além disso, as repercussões de ser classificado como devedor contumaz são severas. Entre as providências, incluem-se o impedimento de usufruir de qualquer benefício fiscal, a proibição de participar em processos licitatórios, a impossibilidade de solicitar recuperação judicial ou, caso já esteja em processo, a conversão em falência. Há também a previsão de declarar a inaptidão da inscrição no cadastro de contribuintes da respectiva administração tributária. Embora esta medida seja tecnicamente diferente da “baixa de CNPJ” originalmente proposta no PLP, na prática ela inviabiliza a operação regular da empresa, impedindo a emissão de notas fiscais e bloqueando suas atividades econômicas. Essa sanção se assemelha a uma “pena de morte civil” e, se aplicada a empresas em dificuldades, pode aniquilar negócios e empregos, mesmo na ausência de fraude ou má-fé.

A ambiguidade sobre o que caracteriza a inadimplência injustificada afronta diretamente princípios constitucionais essenciais, como o da capacidade contributiva, que exige tratamento distinto entre quem não paga por má vontade e quem não paga por impossibilidade financeira. Também contraria o princípio da vedação ao confisco, dado o efeito economicamente devastador da inaptidão cadastral, e o da livre iniciativa, pois o exercício da atividade empresarial não pode ser suprimido sem proporcionalidade. É crucial, ainda, que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados avalie o PLP 125/2022 sob a perspectiva do artigo 150, IV, da Constituição, que proíbe expressamente a utilização de tributos com finalidade confiscatória.

A Pimentel & Rohenkohl Advogados Associados se encontra atenta às atualizações jurídicas pertinentes ao projeto de instituição do Código de Defesa do Contribuinte, bem como se encontra à disposição para possíveis dúvidas sobre o tema.

 

Victor Kalil Belloc Nunes

Advogado na P&R Advogados Associados

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