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25/08/2025

ICMS NAS TRANSFERÊNCIAS E O TEMA 1.367 DO STF: ENFIM, UMA SOLUÇÃO RAZOÁVEL

A invalidade da exigência de ICMS sobre transferências de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa já está consolidada na jurisprudência dos Tribunais Superiores há pelo menos duas décadas. A Súmula 166 do STJ é de 1996, anterior à própria Lei Kandir. Desde então, esse entendimento foi reafirmado pelo STJ no Tema 259, de 2010, e confirmado pelo STF nos julgamentos do Tema 1.099, de 2020 e da ADC 49, de 2021.

No entanto, na ADC 49, novas questões surgiram, porque, diferentemente dos julgamentos realizados até então, a decisão de 2021 ensejou a declaração de invalidade dos dispositivos da LC 87/96, com eficácia plena contra as Fazendas Estaduais independentemente de decisão judicial específica em favor dos contribuintes. Naquele caso, restou também pacificado o entendimento de que os contribuintes não precisariam estornar os créditos das entradas, de sorte que se estabeleceu um vácuo normativo a respeito desse aspecto (posteriormente regulado nos Convênios 178/2023 e 109/2024 e na LC 204/2023).

Diante daquele contexto, o STF, em 2023, em sede de embargos de declaração movidos pelo Estado do RN, decidiu modular os efeitos da decisão de inconstitucionalidade nos seguintes termos: “presentes razões de segurança jurídica e interesse social (art. 27, da Lei 9868/1999) justificável a modulação dos efeitos temporais da decisão para o exercício financeiro de 2024 ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito”.

Tomando-se por base apenas esse trecho dispositivo, contribuintes que não possuíssem discussões administrativas ou judiciais já em curso antes de 19/04/2021 (data do julgamento do mérito) poderiam sofrer a exigência do tributo sobre as transferências. Isso abrangeria diversas situações, como a de contribuintes que propuseram ações após essa data e estavam usufruindo de decisões judiciais para deixar de recolher, e a de contribuintes que, porventura, não tenham proposto ações, mas apenas deixado de recolher o tributo após o julgamento do mérito da ADC 49 (dado o entendimento do STF de que decisões em controle concentrado de constitucionalidade possuem eficácia desde a publicação da ata de julgamento).

A leitura dos fundamentos que embasaram a modulação adotada pela Suprema Corte indicava que essa interpretação simplista era inadequada e incorreta, pois conduzia a gravíssima ofensa à segurança jurídica, dado o cenário absolutamente consolidado na jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto à invalidade dessa tributação. Além disso, a medida apenas premiaria a frontal e reiterada inobservância das Fazendas Estaduais ao entendimento já consolidado no Judiciário.

A modulação de efeitos, como se depreendia do voto do Min. Edson Fachin, tinha três objetivos bastante claros: (a) proteger os planejamentos fiscais daqueles contribuintes que contavam com a tributação das saídas em transferência; (b) evitar cenário de instabilidade diante do vácuo normativo quanto ao tratamento a ser conferido aos créditos das entradas; e (c) evitar repetições de indébito em massa contra as Fazendas Estaduais. Não obstante, a decisão não indica haver autorização para que se mantenha ou se promova a cobrança do tributo em face daqueles contribuintes que deixaram de recolhê-lo, amparados na pacífica jurisprudência dos Tribunais Superiores (com ou sem embasamento em decisão judicial). Aliás, o voto do Min. Nunes Marques, naquela oportunidade, deixava isso muito claro.

Apesar disso, as Fazendas Estaduais passaram a defender que ações ajuizadas após 19/04/2021 visando afastar a exação deveriam ser julgadas improcedentes, invocando a aludida modulação. Ainda, passaram a promover algumas cobranças retroativas dos contribuintes que não ofereceram essas operações à incidência do ICMS.

Alguns Tribunais, como o TJSP, seguiram afastando essa pretensão de cobrança dos Fiscos Estaduais, mas as discussões chegaram novamente ao STF, que afetou a matéria para julgamento no Tema 1.367.

Em um primeiro momento, todavia, a Suprema Corte reconheceu a repercussão geral da matéria e aplicou a técnica da reafirmação de jurisprudência, apenas referendando suas decisões anteriores, mas sem realizar maior investigação quanto à grave insegurança jurídica gerada pelo modo como o precedente da ADC 49 vinha sendo interpretado. Em suma, até aquele momento, as Fazendas estavam se sentindo autorizadas a promover cobranças retroativas, como se a Suprema Corte lhes tivesse outorgado salvo-conduto para fazê-lo contra contribuintes que não tivessem recolhido o tributo e não possuíssem ações ou discussões judiciais anteriores a 04/2021.

Felizmente, essa distorção restou esclarecida e corrigida no julgamento dos embargos de declaração no Tema 1.367, finalizado na última sexta-feira (22/08). Em voto de muita lucidez, o Min. Dias Toffoli divergiu do Min. Relator, e esclareceu que “a Suprema Corte, na modulação de efeitos estabelecida no exame da ADC nº 49/RN-ED, não autorizou a cobrança do ICMS em tela quanto aos fatos geradores anteriores a 2024 em relação aos quais não houve o pagamento do tributo.”

Segundo o Ministro, os motivos para tal modulação foram exatamente os três elencados acima, e “em nenhum momento, […] o Tribunal […] teve o propósito de ampliar a efetiva arrecadação das unidades federadas mediante autorização da cobrança do imposto, com base em norma inconstitucional, quanto a fatos geradores ocorridos antes de 2024 em relação aos quais o tributo não foi pago”. A admissão dessa cobrança, prossegue, “contraria a intenção de se preservarem as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes”, pois, afinal, “seriam pegos de surpresa, com uma cobrança de tributo que era inimaginável”.

Diante disso, o Min. Dias Toffoli propôs a reforma da decisão (de modo a afastar a cobrança pretendida pela Fazenda do Estado de São Paulo no caso concreto) e a adoção da seguinte tese de julgamento: “A modulação de efeitos estabelecida no julgamento da ADC nº 49/RN-ED não autoriza a cobrança do ICMS lá debatido quanto a fatos geradores ocorridos antes de 2024 em relação aos quais não tenha havido pagamento do tributo”.

A posição foi acompanhada por mais seis Ministros, tendo prevalecido por 7 x 3.
Com isso, a Suprema Corte corrige uma grave distorção que se desenhava, a qual acarretava ofensa manifesta à segurança jurídica e premiava injustificadamente a postura das Fazendas Estaduais, que há vinte anos ignorava a jurisprudência dos Tribunais Superiores nesse tema.

Aguarda-se, agora, a formalização do acórdão, e será importante avaliar a situação concreta de cada contribuinte, mas a notícia é sem dúvida positiva. A decisão contribui para a estabilidade e confiabilidade do sistema de precedentes.
O Escritório está monitorando o tema e à disposição para eventuais esclarecimentos.

Luis Carlos Fay Manfra
Sócio da P&R Advogados Associados

 

1 O Estado do RN pleiteou a modulação dos efeitos da decisão argumentando que: (a) os Estados poderiam enfrentar um grande contingente de repetições de indébito; (b) alguns contribuintes poderiam ser prejudicados em seus planejamentos tributários se não mais pudessem destacar o ICMS nas saídas em transferências; e (c) não havia regramento quanto ao tratamento dos créditos das entradas, o que precisaria objeto de nova legislação (lei complementar, Convênio Confaz etc.).

2 Um exemplo seria o de contribuinte que usufrui de crédito presumido calculado sobre as saídas tributadas e que compute, dentre essas saídas, as transferências. Na hipótese, caso deixasse de considerar tais operações, teria um decréscimo em seu incentivo, prejudicando um planejamento fiscal elaborado possivelmente com investimentos de longo prazo.

3 Colhe-se do voto do Min. Nunes Marques naquela ocasião: “Não há espaço para cobranças, retroativas ou prospectivas, desde a publicação da ata do julgamento em que este Tribunal se pronunciou sobre o mérito da ação, porque inconstitucionalidade declarada retira qualquer carga de eficácia jurídica aos atos tendentes a exigir o tributo.

Eventual modulação de efeitos não autoriza o Fisco a autuar contribuintes ou a cobrar o tributo de quem não o recolheu por observância à jurisprudência consolidada nos Tribunais. Em suma: se não houve autuação até o instante do julgamento de mérito, não é após a declaração de inconstitucionalidade do tributo que se fará a exigência (RE 605.552 ED-segundos, Tribunal Pleno, ministro Dias Toffoli, DJe de 12 de abril de 2021; e ADI 2.040 ED, Tribunal Pleno, Redator do acórdão o ministro Dias Toffoli, DJe de 8 de setembro de 2021). Entendo, nessa perspectiva, que devem ser ressalvadas as hipóteses em que o contribuinte não recolheu o ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, na esteira do que a Corte registrou noutros paradigmas, a exemplo da ADI 5.481, Tribunal Pleno, ministro Dias Toffoli, DJe de 4 de maio de 2021).

A modulação de efeitos serve para resguardar aspectos diversos, a bem da segurança jurídica e do interesse social, e não para prolongar cobrança há muito considerada indevida, permitindo espécie de inconstitucionalidade útil. O procedimento direciona-se a regular situações consolidadas, especificamente em relação àqueles que recolheram o tributo.” (ADC 49 ED, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 14-08-2023 PUBLIC 15-08-2023)

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