A segurança jurídica é um pilar fundamental para o desenvolvimento dos negócios em esfera nacional e internacional. Contudo, em certas áreas, a ausência de clareza legislativa e a flutuação de entendimentos administrativos e judiciais lançam uma sombra de incerteza que pode comprometer o planejamento estratégico das empresas. A amortização fiscal do ágio por rentabilidade futura – goodwill – em operações envolvendo empresas-veículo é, sem dúvida, um desses campos minados, que exige cautela e um profundo conhecimento das nuances legais e jurisprudenciais.
A discussão sobre o aproveitamento fiscal do ágio em operações com empresas-veículo não é recente, mas a falta de uma regulamentação clara continua a ser a principal fonte de insurgências jurídicas/legais. O advento da Lei nº 12.973/2014 trouxe alterações relevantes na legislação tributária, incluindo dispositivos aplicáveis à amortização fiscal do goodwill, todavia não tratou sobre o uso de empresas-veículo.
Tal omissão legislativa contribui para o problema, pois permite que o Fisco lavre inúmeros autos de infração, sob a alegação de que as empresas-veículo são constituídas com o único objetivo de reduzir tributos, sem fundamento econômico. Para a fiscalização, essa ausência de “propósito negocial” invalidaria a amortização do goodwill.
É importante ressaltar que não há, na lei, definição de “propósito negocial”; trata-se de um conceito desenvolvido ao longo do tempo pela doutrina e pela jurisprudência. A referida lacuna legal propicia diversas oscilações nos entendimentos fixados, seja no CARF (seara administrativa), seja no STJ (seara judicial).
O CARF, instância máxima na esfera administrativa para disputas tributárias, tem sido palco de intensas discussões sobre o tema. Tradicionalmente, as decisões proferidas pelo órgão variavam dependendo do caso concreto, sendo mantidas as autuações quando se entendia que não havia “propósito negocial” na operação, ou seja, qualquer objetivo na constituição da empresa-veículo além da dedutibilidade do ágio.
Contudo, nos últimos anos, diversos precedentes relevantes sobre o assunto foram publicados pelo CARF. Um exemplo favorável aos contribuintes foi a decisão proferida pela 1ª Turma da Câmara Superior do tribunal administrativo, na sessão de julgamento realizada nesta semana, em 22/07/2025, em que restou consignada a reversão de autuação fiscal significativa contra a Notre Dame Intermédica Saúde S.A., relacionada à amortização de ágio proveniente da aquisição da empresa pelo fundo Bain Capital; por maioria, foi derrubada a autuação de aproximadamente R$ 950 milhões.
Neste caso, defendeu-se que a estrutura utilizada possuía propósito negocial, justificada por exigências regulatórias, como a vedação de endividamento por Fundos de Investimento em Participações (FIPs) e os limites impostos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) às operadoras de saúde. Apesar do recente precedente – positivo ao contribuinte, a jurisprudência administrativa do CARF tem oscilado por tempos, assim como ocorre, também, na seara judicial.
Em meio a esse cenário de incerteza administrativa, houve decisão favorável, proferida pelo STJ, nos autos do REsp nº 2026473/SC, em 05/09/2023; foi a primeira vez que um tribunal superior judicial se posicionou sobre o tema.
Nessa decisão, a 1ª Turma do STJ validou o entendimento defendido pelos contribuintes de que a mera utilização de empresas-veículo, por si só e diante da ausência de dispositivo legal em contrário, não significa um impedimento ao aproveitamento fiscal do ágio. O STJ foi enfático ao afirmar que, embora a preocupação com organizações societárias exclusivamente artificiais seja justificável, “não é dado à Fazenda, alegando buscar extrair o ‘propósito negocial’ das operações, impedir a dedutibilidade, por si só, do ágio nas hipóteses em que o instituto é decorrente da relação entre ‘partes dependentes’ (ágio interno), ou quando o negócio jurídico é materializado via ‘empresa-veículo’; ou seja, não é cabível presumir, de maneira absoluta, que esses tipos de organizações são desprovidos de fundamento material/econômico”.
Essa decisão da 1ª Turma do STJ representa um marco fundamental, pois se apontou como legítima a criação de empresas-veículo segregadas por razões estratégicas, econômicas ou operacionais, defendendo que a análise deve depender de cada caso concreto e que cabe ao Fisco demonstrar a artificialidade das operações.
Contudo, houve divergência – desfavorável ao contribuinte, que se instaurou nas turmas de Direito Público do STJ. Em novembro de 2024, a 2ª Turma do STJ, a partir do REsp 2152642/RJ, manifestou um entendimento no sentido de que a empresa-veículo não seria uma empresa nos termos do Código Civil, pois não haveria exercício de atividade econômica organizada para a circulação de bens ou serviços. Para essa Turma, a criação e uso de tais empresas para operações de reestruturação societária, com valor atribuído por consenso entre as partes (que seriam, na verdade, a mesma pessoa jurídica por pertencerem ao mesmo grupo econômico), não geraria amortização.
O relator da 2ª Turma defendeu que “o abuso de direito perpetrado com a criação de estruturas artificiais para aproveitamento do ágio e pagamento a menor de tributos agride a juridicidade do ordenamento”. Esse posicionamento da 2ª Turma, que presumiria a fraude em todo planejamento societário que envolva empresas-veículo com o objetivo de economia tributária, ignora o direito do contribuinte de organizar seus negócios da maneira menos onerosa tributariamente, desde que as estruturas jurídicas utilizadas se compatibilizem com o ordenamento.
Ressalta-se que, até o presente momento, a divergência entre as 1ª e 2ª Turmas não foi sanada.
Para os contribuintes, a questão central não é se pode haver economia tributária, mas se a operação possui um propósito negocial legítimo. O planejamento tributário não é vedado na legislação pátria; o que é proibido são as operações que acarretem simulação, fraude ou outra espécie de prejuízo.
A dedutibilidade do ágio, ademais, encontra respaldo em princípios fundamentais do direito tributário, como o princípio da renda líquida, segundo o qual as regras de tributação do IRPJ e da CSLL devem observar o efetivo acréscimo patrimonial dos contribuintes após as eventuais deduções aplicáveis. O ágio integra o custo de aquisição do investimento, e o contribuinte deve ter o direito de deduzi-lo. O Fisco, ao se arrogar poderes de gestão das empresas para decidir a forma mais adequada de estruturação de seus negócios, mesmo à margem da lei, age de forma excessiva. A inexistência do propósito negocial nas empresas-veículo não pode e não deve ser presumida pelo Fisco.
A Pimentel & Rohenkohl Advogados Associados se encontra atenta aos entendimentos fixados pelos Tribunais acerca da amortização de ágio em empresas-veículo, bem como se encontra à disposição para possíveis esclarecimentos sobre o tema.
Victor Kalil Belloc Nunes
Advogado na P&R Advogados Associados