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26/09/2024

Modulação de efeitos sobre o terço de férias: boas e más notícias

Na última quinta-feira (19/09/2024), foi publicado o acórdão dos embargos de declaração no RE nº 1.072.485 (Tema 985), em que o STF decidiu pela modulação de efeitos da decisão que declarou a constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o terço de férias. O julgamento foi concluído ainda em junho deste ano, mas a publicação do acórdão era bastante aguardada, para que se pudesse examinar detalhadamente a fundamentação e os termos da medida aplicada.

A modulação de efeitos, cuja aplicação se prolifera em matéria tributária, é um instituto que, nos termos em que concebido na Lei nº 9.869/99 (“Lei da ADI”) e no CPC/2015, tem por objetivos preservar a segurança jurídica e o (excepcional) interesse social. Há muitos aspectos criticáveis no modo como ele é manejado na jurisprudência da Suprema Corte, temática que pude desenvolver de modo mais aprofundado em estudo recentemente publicado sob o título “Modulação de efeitos no direito tributário”.[1]

No caso concreto ora examinado, a modulação foi aplicada na forma do art. 927, § 3º, do CPC, diante da constatação da ocorrência de uma superação de jurisprudência por parte do STF. Isso porque, até o Tema 985, havia, concomitantemente, (i) um entendimento firmado em sede de recurso repetitivo no STJ (Tema 479) assentando a ilegalidade da exigência; e (ii) diversas manifestações do STF sinalizando que a matéria seria de índole infraconstitucional.

O voto do Min. Luís Roberto Barroso elucida que, desde 2011, o STF vinha negando repercussão geral às discussões relacionadas à definição da natureza jurídica das verbas (se indenizatórias ou remuneratórias). Em 2017, ao julgar o Tema 20, a Suprema Corte apenas tratou de definir o conceito de “folha de salários”, estabelecendo que seriam abrangidos nessa definição os valores pagos com “habitualidade”. Todavia, mais uma vez, não adentrou no exame da natureza das verbas. Daí porque o reconhecimento da repercussão geral da matéria no Tema 985 foi recebido com surpresa.

Aliás, como menciona o Min. Barroso, em 2020, poucos dias antes do julgamento do Tema 985, o STF apreciou o Tema 1.100, definido ser “infraconstitucional […] a controvérsia relativa à definição individualizada da natureza jurídica das verbas percebidas pelo empregado […], para fins de incidência da contribuição previdenciária a cargo do empregador”. Ou seja, até muito pouco tempo antes do julgamento do terço, que ocorreu no final de agosto daquele ano, o cenário jurisprudencial ainda apontava para a prevalência da decisão do STJ, no sentido da ilegalidade da incidência.

Traçado esse cenário, importante para a compreensão do problema, reporto-me ao título deste artigo para pontuar qual é a boa e qual é a má notícia advindas do Tema 985.

A boa notícia é a de que o STF reconheceu que os particulares foram surpreendidos com a sua decisão, e compreendeu necessário modular os seus efeitos, mesmo tendo declarado a constitucionalidade da cobrança. Modulações em favor dos contribuintes são raras na jurisprudência da Corte, mas ocorrem: exemplo disso são alguns casos em que se reconheceu a inconstitucionalidade de benefícios fiscais concedidos pelos Estados sem previsão em Convênio do Confaz.[2] Modulações em face de superação de precedente também ocorrem, mas não se tinha notícia, até então, de nenhuma que tivesse se dado em favor do particular em questões tributárias.

No famoso Tema 69 (exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS), o principal fundamento adotado pela corrente majoritária para modular os efeitos da decisão foi o de que teria havido uma superação de jurisprudência, dado que (i) o entendimento consolidado no STJ era pela legalidade da incidência (Tema 313) e que (ii) a matéria era considerada como sendo de índole infraconstitucional pelo STF.[3] Percebe-se que a situação – ao menos nos termos em que descrita pela corrente vencedora naquele caso – era similar à verificada no caso do terço de férias, mas inversa.

No Tema 985, pode-se afirmar que a modulação foi bem aplicada, tanto porque buscou proteger a confiança legitimamente depositada pelos particulares nos precedentes emanados do Judiciário (ou seja, visou promover a segurança jurídica), quanto porque foi em alguma extensão coerente com a modulação previamente aplicada no Tema 69 (naquele caso, em favor do Fisco).

Já a má notícia se deu bem ao final do julgamento, quando o Procurador da Fazenda Nacional pleiteou que o marco temporal da modulação de efeitos fosse fixado na data do reconhecimento da repercussão geral da controvérsia.  A partir disso, estabeleceu-se um debate, capitaneado pelo Min. Barroso, verdadeiramente preocupante. Aventou-se a possibilidade de se passar a adotar esse critério para os casos vindouros, proposta que soa inadequada por pelo menos duas razões.

A primeira delas, levantada pelo Min. Dias Toffoli no próprio julgamento, é a de que o reconhecimento da repercussão geral nada mais é do que a admissão de que a controvérsia é relevante – algo que, inclusive, pode ser decretado por uma minoria da Corte, já que o quórum de 2/3 é para negar a repercussão geral. Portanto, isso não poderia representar um óbice ao acesso efetivo ao Judiciário.

A segunda razão diz respeito ao equívoco de se taxar como “oportunista” a conduta do particular que vai a Juízo buscar o reconhecimento de seus direitos. Expressões como “corrida ao Judiciário”, comumente empregadas nos julgados de modulação para justificar a fixação de determinado marco temporal de modo a evitar que certos contribuintes se beneficiem de uma decisão declaratória de inconstitucionalidade traduzem esse olhar sobre o fenômeno[4]. No entanto, o acesso ao Judiciário constitui garantia fundamental do cidadão (art. 5º, XXXV, da CF/88), e o fato de haver qualquer tipo de sinalização de que o STF enfrentará a matéria, ou mesmo de que se inclina a reconhecer a inconstitucionalidade de determinado tributo, deveria reafirmar esse direito, e não o cercear. Quer dizer: o cidadão que tem notícia de que pode estar sofrendo a exigência indevida de um tributo (e, portanto, a ter a sua esfera de liberdade e de propriedade, entre outros direitos fundamentais, potencialmente invadida de modo indevido pelo Estado brasileiro) passa a ter menos legitimidade de ir a Juízo reivindicar seus direitos porque já tem um indicativo de que esses direitos estão, de fato, sendo violados? Como se percebe, o racional é no mínimo contraditório.

Não fosse isso, o fato é que tal judicialização também acaba sendo impulsionada, em grande medida, pelas próprias condutas da Fazenda Pública e do Poder Judiciário. Arrisco-me a afirmar que se não fosse necessária a propositura de ação judicial para reaver os valores indevidamente pagos, ou se não houvesse probabilidade de modulação de efeitos nas decisões do STF, talvez não houvesse um contingente tão relevante de ações ajuizadas a partir do reconhecimento da repercussão geral, da inclusão em pauta, do início do julgamento, ou de qualquer outro fato capaz de conferir maior publicidade ao caso.[5]

Como mencionei, há notícias boas e ruins advindas desse julgamento. No caso, especificamente, penso que a boa notícia ainda supera a má. Espero que essa balança não se inverta, e que o STF não enverede pelo caminho de intensificar ainda mais o uso da modulação como ferramenta para obstar o pleno acesso ao Judiciário. Afinal, não estamos a tratar apenas de dinheiro, mas de direitos fundamentais, como liberdade, propriedade e acesso à Justiça.

 

 

[1] MANFRA, Luis Carlos Fay. Modulação de efeitos no direito tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2024.

[2] ADIs 429, 4.481, 2.663, 3.796, 3.984, 5.467 e 6.222.

[3] A existência de um julgado de 2014 no Pleno do STF, ao qual não se atribuiu repercussão geral, não foi considerado pela corrente majoritária como sendo indicativo de que a posição da Corte seria pela inconstitucionalidade da incidência. A corrente vencida, por outro lado, considerou que não houve qualquer viragem jurisprudencial, pois desde 2006 o STF já sinalizava seu entendimento a respeito da matéria.

[4] Esse olhar, aliás, é manifestado pelo próprio Min. Dias Toffoli em alguns dos julgados de modulação em matéria tributária de sua relatoria, a exemplo dos Temas 745 e 962.

[5] A propósito, em estudo elaborado pelo INSPER, a pedido do CNJ, intitulado “Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro”, uma das hipóteses confirmadas de causa da litigiosidade é a iminência de julgamento de recursos repetitivos pelos tribunais superiores e o risco de modulação de efeitos.

 

 

Luis Carlos Fay Manfra
Advogado tributarista na P&R Advogados

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