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10/02/2023

Flexibilização da coisa julgada em matéria tributária: O que o STF decidiu nos temas 881 e 885?

10/02/2023

A escolha do tema para o artigo desta semana, infelizmente, não poderia ser outra. Não havia como deixar de tratar do julgamento concluído esta semana no STF acerca dos efeitos da coisa julgada em matéria tributária, Temas 881 e 885 da Repercussão Geral. Este breve texto é produzido sob um dúplice sentimento: de um lado, a intenção é a de esclarecer o que efetivamente foi decidido pela Suprema Corte sobre essa matéria e, com isso, na medida do possível, acalmar alguns contribuintes que possam estar alarmados em face da decisão; de outro, é também necessário externar algumas dúvidas e críticas que ficam a partir do que o STF decidiu – questionamentos esses para os quais não se tem a pretensão de oferecer respostas definitivas. Aliás, a questão é extremamente complexa, não sendo possível sequer vislumbrar por completo todos os seus desdobramentos neste momento.

Iniciemos, então, por tentar esclarecer o que estava em julgamento. A hipótese examinada era a de contribuintes que possuíam decisões judiciais transitadas em julgado (coisa julgada, portanto), por meio das quais se reconheceu que eles não deveriam recolher a CSLL, ao fundamento da inconstitucionalidade dessa contribuição. Ocorre que, após o trânsito dessas decisões, o STF veio a assentar a constitucionalidade da contribuição, quando do julgamento da ADI nº 15, em 2007. Diante desse cenário, estabeleceu-se a seguinte controvérsia: poderia o Fisco cobrar a CSLL desses contribuintes que possuíam decisões judiciais transitadas em julgado afirmando que eles não deveriam recolher o tributo, quando há ulterior decisão da Suprema Corte reconhecendo que a exação é, efetivamente, constitucional? E mais: poderia o Fisco fazê-lo sem sequer manejar ação rescisória?

Os argumentos defendidos pela Fazenda foram, essencialmente, os de que (i) a decisão proferida pelo STF em controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, inaugura nova norma na ordem jurídica e, como tal, implica alteração da situação normativa, a ensejar a cessação imediata dos efeitos da coisa julgada então existente em favor dos contribuintes; e de que (ii) a manutenção dos efeitos da coisa julgada em favor do particular acarretaria quebra da isonomia em relação aos demais contribuintes que não possuem decisão judicial ressalvando-lhes da cobrança.

Já os contribuintes buscaram sustentar, dentre diversos argumentos, (i) que a coisa julgada, enquanto direito fundamental assegurado na Constituição (art. 5º, inciso XXXVI), não poderia ser flexibilizada ou superada, não ao menos sem uma específica ação rescisória; (ii) que, a prevalecer a tese defendida pela Fazenda, estaria o STF instaurando um cenário de extrema insegurança jurídica; e (iii) que não haveria de se falar em quebra da isonomia, pois não há situação idêntica entre os contribuintes que possuem uma decisão transitada em julgado e os que não possuem, tratando-se, inclusive, de um critério distintivo legítimo e relevante.

Diante dessa controvérsia, então, o que restou decidido pela Suprema Corte? A tese fixada estabelece o seguinte:

 

  1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
  2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

 

O primeiro item da tese de julgamento tratou de explicitar que decisões proferidas em sede de controle difuso anteriores à repercussão geral não possuíam esse efeito automático e, portanto, não autorizavam a cobrança do tributo pelo Fisco contra contribuintes que possuíssem decisões favoráveis transitadas em julgado exonerando-lhes da exação. Esse registro é importante para estabelecer que tipo de decisão em controle de constitucionalidade é passível de gerar tal efeito retrooperante para fins de fazer cessar os efeitos da coisa julgada. Está claro que se considerou terem esse condão somente decisões formalmente vinculantes do STF.

Já o segundo item trouxe, propriamente, os pontos mais importantes, a saber: (i) a cessação dos efeitos da coisa julgada obtida pelo particular se considera ocorrida automaticamente a partir das decisões proferidas pela Suprema Corte em controle concentrado ou em controle difuso com repercussão geral; (ii) deve ser respeitada a irretroatividade; e (iii) deve-se observar, ainda, as garantias da anterioridade anual e nonagesimal, conforme o tributo. Na prática, portanto, o que decidiu o STF: para aqueles contribuintes que possuírem uma decisão judicial transitada em julgado reconhecendo-lhes o direito de não recolher determinado tributo sob o fundamento de sua inconstitucionalidade, na hipótese de sobrevir uma decisão da Suprema Corte, seja em controle concentrado, seja em controle difuso com repercussão geral, assentando a constitucionalidade dessa mesma relação tributária, estará o Fisco autorizado a exigir-lhes a exação, sem a necessidade de propositura de ação rescisória, mas apenas a partir dessa decisão do STF que fixa a constitucionalidade (isto é, fatos geradores posteriores à decisão) e observada a anterioridade (de exercício ou noventena, conforme o tributo), a contar também da decisão.

Aqui começam os inúmeros problemas. O primeiro deles é a insegurança jurídica gerada. Não por acaso, a coisa julgada é um direito fundamental, figurando ao lado do direito adquirido e do ato jurídico perfeito no mesmo dispositivo constitucional. A proteção à coisa julgada é um marco civilizatório, que visa conferir estabilidade às relações, e é ínsito à própria ideia de Estado de Direito. Visa preservar as legítimas expectativas do particular que, tendo se submetido ao procedimento estabelecido Estado para o exame judicial de determinada controvérsia, sairá dele com uma decisão definitiva sobre algo. Agora, no entanto, essa definitividade já não mais se apresenta da mesma maneira.

Outra questão que se apresenta problemática é a ideia de que a cessação dos efeitos da coisa julgada se dá automaticamente a partir da decisão ulterior do STF que, em caráter vinculante, afirma a constitucionalidade. Isso porque nem sempre é possível identificar com clareza qual o marco temporal a partir do qual essa decisão do STF surtirá efeitos. Apenas para citar dois exemplos: o Tema 69 demorou quatro anos (!) para ter julgados os embargos de declaração sobre a modulação de efeitos; por sua vez, o Tema 985, cujo mérito foi julgado em 2020, ainda não teve, passados mais de dois anos, conclusão do julgamento dos embargos de declaração sobre a questão da modulação. Qual o critério? Claramente, mais insegurança jurídica neste ponto.[i]

Ainda, suscitam especial preocupação aqueles casos que foram apreciados pelo STF já há muitos anos – como, aliás, era a hipótese examinada nos Temas 881 e 885, visto que a ADI que assentou a constitucionalidade da CSLL foi julgada em 2007. Tendo isso em mente, mesmo considerando-se as “ressalvas” de irretroatividade e anterioridade, poderá a Fazenda vir a realizar cobranças de períodos relativamente expressivos. E poderá fazê-lo cobrando multa e juros, a depender da situação – o que nos parece completamente absurdo, considerando-se a confiança legítima do contribuinte até então amparado em decisão transitada em julgado.[ii] Esse ponto, inclusive, é alvo de contundentes críticas, uma vez que o STF rejeitou, por maioria bastante apertada, o pedido de modulação de efeitos para que esse entendimento fixado nos Temas 881 e 885 só valesse para o futuro, isto é, para os novos casos nessa situação.

Como anunciado no início deste artigo, o tema é complexo. Muitos desdobramentos ainda hão de surgir e a publicação do acórdão, ainda não ocorrida, deverá trazer um pouco mais de luzes a esses tantos pontos de dúvida. De todo modo, se algo de positivo pode ser extraído neste momento é o fato de que, pelo que consta da tese de julgamento, restou vedada a irretroatividade (ou seja, a Fazenda só poderá cobrar a partir da decisão do STF que assenta a constitucionalidade) e se buscou assegurar algum tempo para a reorganização dos contribuintes diante de uma tal circunstância, com a aplicação das garantias da anterioridade.

Por fim, não se pode deixar de registrar ser um tanto quanto irônico que justamente o primeiro caso a ser julgado após a reconstrução do Plenário da Suprema Corte, depois dos atos do dia 08/01, tenha resultado na formação de um precedente que enfraquece sobremaneira um dos mais importantes institutos do Estado de Direito: a coisa julgada. E essa crítica não é feita sequer sob a premissa de que se deveria manter, para todo o sempre, decisões transitadas em julgado contrárias à interpretação vinculante advinda do STF. O ponto é como equalizar isso. Quer parecer que haveria formas e institutos jurídicos mais adequados para essa tarefa. No entanto, a ideia de cessação automática dos efeitos da coisa julgada e de que, ao fim e ao cabo, ficará a cargo da Fazenda (ou seja, do Estado) decidir quando isso ocorre e promover de plano a cobrança, sem qualquer intervenção judicial específica para desconstituir a anterior decisão passada em julgado, é preocupante.

O escritório permanecerá atento aos desdobramentos do tema e se coloca à disposição para qualquer esclarecimento.

Luis Carlos Fay Manfra

Advogado na P&R Advogados Associados

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[i] Aproveitando o ensejo, um dos argumentos em que mais insistiu a Fazenda foi o de que esse entendimento valeria “tanto para o Fisco quanto para os contribuintes”. Ou seja, não seria uma tese “fazendária”, pois reconhecida a inconstitucionalidade de um determinado tributo pelo STF, “poderiam” os contribuintes também deixar de recolhê-lo, ainda que tivessem contra si coisa julgada em caso específico anterior declarando a constitucionalidade desse mesmo tributo. Esse argumento, entretanto, incorre em um equívoco de premissa. Veja-se: quando um contribuinte vai a Juízo arguindo a inconstitucionalidade de uma relação tributária e tem sua pretensão negada, nada se altera na ordem jurídica, porque a presunção já é a de constitucionalidade das normas quando da sua instituição. Diante de um tal cenário, vindo o STF a declarar a inconstitucionalidade desse tributo em caráter vinculante e erga omnes, é evidente que esse contribuinte não mais deverá recolhê-lo. Com o perdão da singeleza da expressão, a inconstitucionalidade “só precisa ser declarada uma vez”. A norma específica que é a coisa julgada interpartes que declara a constitucionalidade de um tributo não assegura ao Estado (que é quem detém o poder de tributar e quem edita as normas, não esqueçamos disso) o direito de seguir exigindo um tributo declarado inconstitucional pelo STF. A situação inversa, por outro lado, é completamente distinta. Quando um contribuinte obtém uma declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso, a presunção da constitucionalidade da norma é quebrada e, passando essa decisão em julgado, ela constitui uma norma individual no ordenamento que assegura a esse jurisdicionado/contribuinte o direito de não recolher tal tributo. Não se aplica, portanto, a mesma lógica da primeira situação.

[ii] Não e tão difícil imaginar uma situação dessas. Se, por exemplo, a ação em controle concentrado que assentou a constitucionalidade data de seis anos atrás, mesmo que o tributo em questão esteja submetido à anterioridade de exercício, poderá a fazenda cobrar os últimos cinco anos, e fazê-lo de forma a acrescer multa e juros sobre esse período.

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