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23/09/2022

STF inicia julgamento do DIFAL: Primeiras impressões do voto do MIN. Relator

23/09/2022

O STF iniciou, nesta sexta-feira (23/09), o julgamento do DIFAL sobre as operações interestaduais de venda de mercadoria a consumidores finais não contribuintes do ICMS. As ADIs 7066, 7070 e 7078 discutem a constitucionalidade da exigência do tributo durante o exercício de 2022, uma vez que a Lei Complementar nº 190/2022, que dispôs sobre as regras gerais para a cobrança do DIFAL, somente foi publicada em 05/01/2022, portanto, já no curso do presente exercício.

Rememorando brevemente a controvérsia, já tratada em artigo anterior (aqui), a exigência do DIFAL sem previsão em lei complementar foi julgada inconstitucional pelo STF em 2021 (ADI 5.469/DF e RE 1.287.019/DF – Tema 1.093), mas houve modulação dos efeitos da decisão, de modo a permitir que os Estados e o DF pudessem seguir cobrando o tributo até o final daquele ano, e conferindo, assim, tempo hábil para que o Congresso Nacional editasse a norma complementar. No entanto, como a dita lei complementar só foi sancionada e publicada já no curso do ano de 2022, e previa expressamente em seu art. 3º que sua produção de efeitos deveria observar ao disposto no art. 150, III, ‘c’, da Constituição Federal (dispositivo que prevê a anterioridade nonagesimal e que faz remissão à anterioridade de exercício, prevista na alínea ‘b’ do mesmo inciso), os contribuintes passaram a sustentar que as garantias da anterioridade haveriam de ser observadas e que esse tributo só poderia ser exigido validamente a partir do próximo exercício, ou seja, 2023.

Um novo capítulo da discussão se inicia hoje, com o começo do julgamento das ADIs que discutem a matéria pelo Pleno do STF. O Min. Relator Alexandre de Moraes, que já havia apreciado e denegado os pedidos de medida cautelar, disponibilizou sua minuta de voto (disponível aqui), no sentido de declarar a inconstitucionalidade do referido art. 3º da LC 190/2022, na parte em que faz remissão ao dispositivo constitucional da anterioridade. Há, no entanto, algumas questões intrigantes nos fundamentos lançados pelo Ministro, as quais se pretende examinar brevemente neste artigo.

Em suas razões, o Min. Relator argumenta, inicialmente, que as garantias constitucionais da anterioridade somente poderiam se referir às normas estaduais, uma vez que o texto constitucional estabelece essa salvaguarda apenas quanto às hipóteses de “instituição” ou “aumento” de tributos, e que a lei complementar, a rigor, não conforma nenhuma dessas duas situações. Para ele, a LC 190/2022 “não modificou a hipótese de incidência, tampouco da base de cálculo, mas apenas a destinação do produto da arrecadação”. Seguindo essa linha argumentativa, o Min. registra que o STF possui jurisprudência consolidada no sentido de que as normas que disponham sobre obrigações acessórias não se sujeitam ao princípio da anterioridade, e que a hipótese em análise seria justamente essa.

Neste ponto, já há alguns aspectos interessantes a examinar. O primeiro deles é o fato de que, se a lei complementar realmente dispusesse acerca de obrigações acessórias, como afirma o Relator, não haveria sequer razão para que o STF tivesse julgado a cobrança inconstitucional em 2021, por um motivo simples: obrigações acessórias não exigem disposição em lei complementar. A LC 190/2022 dispôs sobre questões atinentes à regra-matriz de incidência do tributo, definindo contribuinte, base de cálculo, momento da incidência, entre outras, e não meramente sobre aspectos acessórios.

O segundo ponto diz respeito à afirmação de que a LC 190/2022 não teria modificado a hipótese de incidência, tampouco a base de cálculo, mas apenas a destinação do produto da arrecadação. Como decidido pelo STF em 2021, a EC 87/2015 foi mais do que mera redistribuição de produto de arrecadação; tratou-se de criação de uma nova relação jurídico-tributária. Mas, para além disso, pinçando especificamente a referência à suposta ausência modificação da base de cálculo, verifica-se que também é questionável a afirmação do Relator. Isso porque a LC 190/2022 passou a definir que o ICMS a ser calculado por dentro, no que se refere ao DIFAL, é aquele correspondente à alíquota interna do Estado de destino, sendo que antes da edição dessa norma complementar, o cálculo por dentro era realizado considerando-se a alíquota interestadual do ICMS. Há, nesse sentido, uma inequívoca modificação da metodologia da base de cálculo a partir da LC 190/2022.

Finalmente, um terceiro ponto digno de nota, dentre os fundamentos até aqui examinados, diz respeito à interpretação restritiva conferida à aplicação da anterioridade, com base na literalidade do texto constitucional, quando faz referência às palavras “instituiu” e “aumentou”. É que a jurisprudência do STF, historicamente, sempre adotou a interpretação de que a majoração de tributos, ainda que de forma indireta, também haveria de respeitar à anterioridade, compreendendo essa garantia não apenas enquanto regra, mas também enquanto princípio derivado da segurança jurídica. Nesse sentido, por exemplo, decidiu o Pleno da Suprema Corte quando do julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.325, oportunidade em que concluiu que a nova norma então questionada (naquele caso, por coincidência, também uma lei complementar), a qual havia acarretado restrições ao direito de aproveitamento de créditos de ICMS, por implicar aumento de carga tributária, ainda que indiretamente, haveria de respeitar as garantias da anterioridade. Veja-se, não se estava nem diante de norma que “instituía” imposto, nem de norma que “aumentava” o tributo (não havia aumento de alíquota, por exemplo). E mesmo assim, o STF afirmou ser necessária a observância da anterioridade. O mesmo entendimento foi diversas vezes aplicado às situações de redução ou revogação de benefícios fiscais.

Prosseguindo, mais adiante em sua fundamentação, o Min. Relator registra que, a admitir-se a aplicação da anterioridade, teríamos “um resultado incongruente, ante a impossibilidade de se resgatar a sistemática anterior à EC 87/2015”. O que quer dizer com isso é que a carga tributária pós-EC 87/2015 seria inferior à carga anterior à referida Emenda, o que seria contrário à intenção do constituinte derivado. Isso porque, antes dessa alteração constitucional, o tributo era devido ao Estado de origem com base na alíquota interna, ao passo que, após a modificação, passou o Estado de origem a fazer jus à alíquota interestadual – menor que a interna –, com o diferencial sendo recolhido para o Estado do destino.

A questão, todavia, é que a alteração constitucional foi implementada, de sorte que passou a haver, a partir de então – e como decidido pelo STF em 2021 – duas relações tributárias: (i) uma entre vendedor e Estado em que situado; e (ii) outra entre vendedor e Estado de destino. Para esta segunda, a exigência do tributo precisava da lei complementar, o que foi ignorado pelos Estados, mesmos contra uma clara orientação da assessoria jurídica do CONFAZ[i]. Trazer essa comparação com o cenário anterior à EC 87/2015 pode conduzir retoricamente à conclusão de que as Fazendas estariam “perdendo” arrecadação de forma injustificada. No entanto, o ponto é outro. A partir de 2015, a Constituição estabeleceu uma nova competência tributária para os Estados de destino, que foi exercida de forma inconstitucional pelos Entes Federados. E sendo este o caso, a carga tributária validamente exigível era igual a zero. Logo, não há “perda”; pelo contrário, há “ganhos” indevidos há pelo menos 7 anos, em sua maior parte irrecuperáveis pelos contribuintes, face à modulação de efeitos definida pela Corte.

Por fim, quanto ao art. 24-A da LC 87/96, introduzido pela LC 190/2022, entendeu o Min. Relator que não haveria inconstitucionalidade, uma vez que o prazo concedido para adequação dos contribuintes a contar da disponibilização do Portal Nacional do DIFAL, “embora se caracterize como óbice ao início imediato da cobrança do DIFAL, não traduz comportamento excessivo do legislador”. Em outras palavras, compreendeu o Relator que o prazo concedido seria razoável e, por esse motivo, não haveria ofensa à divisão de competências definida na Constituição.

Para além dos aspectos destacados neste breve artigo, haveria outras questões passíveis de discussão, todas elas relevantes. Não obstante, o tema ainda deve se desenvolver no decorrer da próxima semana, à medida em que os demais Ministros disponibilizarem seus votos. O julgamento no Plenário Virtual tem previsão de encerramento na próxima sexta-feira (30/09), sendo que, caso haja pedido de destaque por algum dos julgadores, a sessão é interrompida e o caso vai para o julgamento presencial.

O escritório permanecerá acompanhando o julgamento e à disposição para qualquer esclarecimento sobre o tema.

Luis Carlos Fay Manfra,

Advogado na P&R Advogados Associados.

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[i] O tema foi objeto, à época, de consulta à assessoria jurídica do CONFAZ (PGFN), que apresentou o Parecer nº 1.226/2015 explicitando, com base na doutrina e na jurisprudência do STF, a ausência de autoaplicabilidade da EC nº 87/2015 e a inexistência de suporte normativo redação da LC nº 87/96, sendo necessária a edição de prévia lei complementar para regulamentar a matéria.

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