Há pelo menos duas decisões recentes contra o contribuinte na 2ª Região
Por Joice Bacelo
Os desembargadores do Rio de Janeiro têm vetado a aplicação da lei que pôs fim ao voto de qualidade (nº 13.988) para casos julgados no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) antes da sua publicação, no mês de abril.
Há pelo menos duas decisões recentes da 3ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região nesse sentido. São as primeiras de segunda instância que se têm notícia. Há uma série de ações que foram ajuizadas pelos contribuintes antes de a nova lei existir. São casos de empresas que perderam por voto de qualidade no Carf e recorreram ao Judiciário. Consideram ilegal essa sistemática – o desempate pelo presidente da turma julgadora, sempre um representante da Fazenda Nacional.
A nova lei, desde que foi publicada, vem servindo como reforço para esses processos. A intenção é anular os julgamentos do Carf. Os conselheiros teriam, então, que reexaminar os casos, só que, desta vez, sob a vigência da nova norma.
Publicada em abril, a Lei nº 13.988 incluiu o artigo 19-E na Lei nº 10.522, de 2002, para proibir o voto de qualidade e dar a vitória ao contribuinte em caso de empate. A Câmara Superior do Carf adotou pela primeira vez esse novo critério em julgamento recente (leia mais abaixo).
Uma das decisões do TRF envolve a empresa Ferreira International, do setor de alimentos, que ingressou com ação em novembro do ano passado – cinco meses antes de a nova lei existir. Ela obteve, em primeira instância, o direito a um novo julgamento no Carf. Essa decisão foi proferida em junho pela juíza Geraldine Vital, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro e, ao favorecer o contribuinte, ela citou a Lei nº 13.988.
Só que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) recorreu e conseguiu, recentemente, reverter a decisão na 3ª Turma Especializada do TRF. O relator do caso, desembargador Marcus Abraham, diz que os votos dos conselheiros do Carf, sejam eles representantes da Fazenda Nacional ou dos contribuintes, não podem ser qualificados como “de representação”.
“Devem estar vinculados ao interesse público e pautados pela legalidade e imparcialidade, devendo ser afastada a ideia de que os representantes da Fazenda decidem sempre a favor do Fisco e os representantes dos contribuintes decidem sempre a favor dos contribuintes”, afirma.
O desembargador rechaçou a aplicação do artigo 112 do Código Tributário Nacional (CTN) ao caso. A empresa havia usado esse dispositivo para defender a ilegalidade do voto de qualidade. O 112 prevê que quando houver dúvida o entendimento deve ser o mais favorável ao contribuinte. Para Abraham, no entanto, esse artigo só se aplica para questões de direito tributário penal.
Sobre a nova lei, diz, não há como ser aplicada para o passado. “Seja pela regra geral de proibição da retroatividade (artigo 6º da LINDB), seja em face do princípio tempus regit actum, aplicável aos processos administrativos em geral, segundo o qual a validade dos atos jurídicos processuais deve ser examinada à luz da legislação vigente ao tempo da sua prática”, afirma. Ele foi seguido, de forma unânime, pelos demais julgadores da turma (processo nº 5094299-45.2019.4.02.5101).
Esse caso envolve uma autuação fiscal pelo uso indevido dos benefícios do drawback suspensão – que permite desoneração de impostos na importação quando vinculada a um compromisso de exportação. A Receita Federal entendeu que o contribuinte não teria preenchido todos os requisitos formais necessários para a obtenção desse benefício.
A empresa foi autuada em cerca de R$ 25 milhões, montante que conseguiu reduzir desde a análise do caso pela Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ), a primeira instância administrativa. O valor atual está em cerca de R$ 800 mil e inclui Imposto de Importação, IPI, PIS e Cofins.
Em julho de 2016, a empresa conseguiu derrubar a autuação na 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, mas acabou perdendo na Câmara Superior, por meio do voto de qualidade, que restaurou em parte o auto de infração. Com a derrota, resolveu, então, recorrer ao Judiciário.
O advogado que assessora a empresa nesse caso, diz que serão apresentados embargos de declaração contra a decisão do TRF. “Apesar de existir a possibilidade de a nova lei ser aplicada, nós, nesse processo, em momento algum pedimos a retroatividade e a primeira instância também não aplicou a nova lei. A juíza acatou a nossa tese de inconstitucionalidade e ilegalidade do voto de qualidade e apenas citou a nova lei. Só que acabou gerando certa confusão e o tribunal adotou esse posicionamento”, diz.
Um outro caso, também julgado recentemente pela 3ª Turma Especializada do TRF, envolve o BTG Pactual. O banco recorreu à Justiça depois de perder, por voto de qualidade no Carf, uma discussão envolvendo pagamento de participação dos lucros e resultados (PLR). Trata-se do processo nº 0030809-42.2016.4.02.5101.
O BTG havia sido autuado pela Receita Federal tanto para fins previdenciários, por não ter recolhido tais valores ao remunerar os seus funcionários, como por ter deduzido esses pagamentos da base de cálculo do Imposto de Renda (IR) e da CSLL. A autuação refere-se aos anos de 2007 e 2008.
A Constituição Federal prevê, no artigo 7º, os pagamentos de PLR de forma desvinculada da remuneração – e por esse motivo, não há tributação sobre tais valores. Mas existem regras que precisam se seguidas para que se tenha o direito à imunidade tributária. Estão estabelecidas na Lei nº 10.101, do ano 2000.
Entre elas consta que os planos de pagamento precisam ter regras claras e objetivas. O Fisco entendeu que o BTG Pactual não cumpriu esse requisito e, por esse motivo, desenquadrou os pagamentos feitos como PLR – exigindo, portanto, a tributação. Segundo consta no processo, são cobrados cerca de R$ 150 milhões somente em decorrência da dedução de despesas relativas aos pagamentos realizados a título de PLR do cálculo do IR e da CSLL.
O advogado que atua para o BTG, tentou aplicar a tese da retroatividade da Lei nº 13.988 ao defender o banco no julgamento. “O CTN afirma que pode ser aplicada desde que o caso não esteja devidamente julgado. Devidamente julgado diz respeito às questões que são trazidas ao Judiciário, nunca ao processo administrativo. Portanto, pelo artigo 106 é possível, hoje, aplicar a Lei nº 13.988”, afirmou na ocasião.
O relator desse caso é o desembargador Theophilo Miguel Filho. Ele seguiu a mesma linha de argumentação usada pelo desembargador Marcus Abraham no julgamento envolvendo a empresa Ferreira International.
“Os atos devem observar as ações vigentes ao tempo da sua prática, sob pena de retroação indevida da lei nova para alcançar ato já consumado. O Código de Processo Civil, no artigo 15, estabelece que tem de respeitar a eficácia dos atos já realizados ou iniciados”, diz em seu voto.
O BTG Pactual foi procurado pelo Valor, mas informou, por meio de sua assessoria, que não comentaria a decisão.
Os procuradores Gilson Bomfim e Clarice Bechara, que atuam pela PGFN na 2ª Região, afirmam que entendimento contrário – favorável ao contribuinte – levaria a um “caos administrativo”. “Imagine se todos os processos julgados pelo Carf e decididos por voto de qualidade tivessem que ser rejulgados. Inviabilizaria a própria atividade do Carf. Esse não foi o intuito do legislador”, diz Bomfim, acrescentando que a Constituição, além disso, no artigo 5º, não permite que atos praticados anteriormente sejam atingidos.
Gilson Bomfim e Clarice Bechara afirmam ainda que a via administrativa é uma opção ao contribuinte. “Perdendo, ele pode optar pela esfera judicial. Já ao Fisco não é permitido. Se perder no Carf, não poderá recorrer ao Judiciário”, diz Clarice.
Fonte: Valor Econômico