Por Flávia Maia
O aproveitamento de créditos relacionados a itens saídos da Zona Franca de Manaus é tema que continua controverso no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). As turmas do tribunal vem adotando diferentes entendimentos sobre o assunto mesmo após a publicação do acórdão por meio do qual o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu que empresas tomem créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ao comprarem insumos, matérias-primas e embalagens isentas saídas da zona franca.
O acórdão foi publicado no dia 20 de setembro, mas parte dos conselheiros defende que, de acordo com o artigo 62 do regimento interno do Carf, o tribunal estaria vinculado apenas a decisões definitivas. O processo relacionado à zona franca ainda não transitou em julgado, e portanto, para esses julgadores, não seria necessário aplicar a decisão do STF tomada em repercussão geral.
No dia 4 de outubro o argumento recebeu um novo reforço quando a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entrou com embargos de declaração contra o acórdão do STF.
Segundo fontes ouvidas pelo JOTA, isso significa que o processo judicial tomou um novo fôlego e não tem data para ser encerrado. A disputa envolve perda de arrecadação anual de R$ 2,3 bilhões aos cofres públicos, segundo estimativas do Ministério da Economia.
Ambev e Coca-Cola
O assunto chegou ao Carf entre os dias 24 e 26 de setembro, e as turmas ordinárias seguiram entendimentos distintos: algumas optaram por não seguir o acórdão da corte máxima, e outras entenderam pela vinculação à decisão publicada.
Em 25 de setembro, a 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção aplicou o entendimento do STF. O posicionamento foi tomado após a análise de processos da Norsa, fabricante de Coca-Cola, e da Ambev e, nos dois casos, por maioria de votos, o colegiado acompanhou o acórdão do STF.
A Ambev, entretanto, perdeu um processo semelhante na 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção. No dia 24 de setembro, a unanimidade dos conselheiros considerou que ainda não está vinculada à decisão do STF. A relatora do caso, conselheira Mara Cristina Sifuentes, entendeu que o precedente do STF ainda não é definitivo. “A decisão do STF optou pelo creditamento. Mas a decisão não transitou em julgado”, informou no voto.
Em agosto, antes da publicação do acórdão, a 2ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção optou por sobrestar processos da Spal e da Ambev até o trânsito em julgado da ação do STF.
Na Câmara Superior de Recursos Fiscais, última instância do processo administrativo do Carf, ainda não ocorreram julgamentos após as últimas movimentações no processo judicial. Antes da publicação do acórdão e dos embargos, o colegiado optava por não seguir a determinação do STF.
Advogados de empresas ouvidos pelo JOTA estão ansiosos para saber se a 3ª Turma vai continuar adotando o entendimento contrário ao STF, ou se ela renderá ao acórdão já publicado. O colegiado se reunirá entre 15 e 17 de outubro.
Trâmite judicial e administrativo
No dia 26 de abril deste ano, ao analisar o RE 592.891, o plenário do STF entendeu pela constitucionalidade do creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, “considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT”.
Segundo especialistas, a indefinição no Carf deve permanecer com os embargos de declaração assinados pela procuradora Luciana Miranda Moreira. A procuradoria afirma que o acórdão do STF é omisso e obscuro, pedindo esclarecimentos.
Para a PGFN, não é possível a aplicação do direito ao crédito para aquisições de insumos não tributados ou de alíquota zero. Assim, o acórdão do STF geraria créditos não previstos em legislação. “O creditamento pretendido, ao invés de diminuir os custos de produção do fabricante da Zona Franca, autoriza um benefício fiscal em valores a serem livremente manejados pelos contribuintes, em explícita discrepância da regra da não-cumulatividade”.
A PGFN, nos embargos, sugere uma nova redação para o item 322 da repercussão geral, em que retira o creditamento de itens não tributados ou tributados à alíquota zero, saídos da Zona Franca de Manaus. Esse item é a principal disputa entre a Fazenda Nacional e os contribuintes. Fontes consultadas pelo JOTA acreditam que é uma tentativa de mudar o teor da decisão do STF, no entanto, a probabilidade disso acontecer é pequena.
Insegurança jurídica
Enquanto houver trâmite processual no STF, os conselheiros do Carf continuam amparados pelo regimento para votarem em divergência ao acórdão da corte máxima. Além disso, os fiscais da Receita poderão continuar as autuações. Segundo fontes ouvidas pelo JOTA, na prática, a situação continua instável para os contribuintes com lides nesse sentido.
“O Supremo já julgou a questão. Os embargos de declaração, por lei, não têm efeitos infringentes [modificativos]. Tudo foi muito apreciado [no acórdão]”, analisa uma advogada. “ Os embargos de declaração aqui são muito mais protelatórios do que qualquer outra coisa. O próprio Supremo tem diversos precedentes dizendo que após a publicação da ata, a decisão já se torna aplicável”, complementa.
Especialistas ponderam que a escolha de conselheiros do Carf por votar em discordância com a decisão do STF pode gerar judicialização e trazer danos futuros à própria União, já que as empresas que perderam na instância administrativa deverão levar o assunto ao Judiciário. Na Justiça, os magistrados devem julgar conforme o precedente do STF, e, com isso, a União pode ter de arcar com a sucumbência no Judiciário, o que vai impactar o orçamento público da União. Muitos dos processos têm valores milionários.
“À medida em que os contribuintes vão perdendo na esfera administrativa, vão ao Judiciário e vão ganhar medida antecipatória em uma tutela antecipada. O magistrado vai fazer valer a decisão do STF porque tem acórdão publicado”, explica Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio. “É preciso uma análise econômica do fato. Hoje a PGFN está ganhando no Carf, mas olhando para frente o fisco pode perder no Judiciário e ter o ônus das custas processuais e dos honorários de sucumbência”.
O professor lembra que a Lei da Liberdade Econômica alterou a Lei nº 10.522/2002, liberando a PGFN de contestar, oferecer contrarrazões e interpor recursos em algumas situações, dentre elas a existência de posicionamento do Supremo em repercussão geral. A PGFN também pode desistir de recursos já interpostos.
Tributaristas defendem que a melhor decisão, no momento, seria a suspensão dos processos relativos à tomada de créditos de IPI de insumos, matéria-prima e embalagem saídos da Zona Franca de Manaus até a esperada decisão definitiva.
“A decisão do STF tem que ser, no mínimo, um balizador. Se o Carf não quer adotá-la porque ela não está transitada em julgado, tem que se adotar pelo menos uma postura intermediária de sobrestar o processo. O que não pode é cada colegiado entender de uma forma”, analisa um advogado.
Fonte: JOTA